
Às 16h45 desta segunda-feira, no Hospital Ernesto Dornelles, em Porto Alegre, faleceu o folclorista João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes, aos 91 anos. O velório será realizado no Palácio Piratini, a partir das 10 horas desta terça-feira. Paixão Côrtes estava internado desde 18 de julho após fraturar o fêmur em uma queda em casa e passar por uma cirurgia. Em situação delicada pela idade avançada, Paixão Côrtes sofreu algumas complicações pós-cirúrgicas. O folclorista, referência no estudo — e na própria formatação — da identidade do gaúcho, deixa como legado aquilo que só cabe na biografia dos mais importantes pesquisadores: sua imagem se confunde com a do objeto que ele dedicou a vida a desvendar.
Estão enganados no Rio Grande do Sul todos esses que acham que João Carlos Avila Paixão Cortes era um tradicionalista. Era um folclorista, alguém que estudava o folclore e reproduzia as criações culturais populares do Estado. Folclore entendido no sentido do conjunto de tradições e manifestações populares constituído por lendas, mitos, provérbios, danças e costumes que são passados de geração em geração. A palavra é formada pela junção em inglês de folk (povo) e lore (sabedoria ou conhecimento). Uma vez entrevistei Paixão Cortes, e ele se definiu assim. Ele até não gostava de ser visto como tradicionalista. O folclore simboliza a cultura popular e apresenta grande importância na identidade de um povo, de uma nação. Para não se perder a tradição folclórica, é importante que as manifestações culturais sejam transmitidas através das gerações. O folclore é o produto da cultura de um país e por isso cada país tem elementos únicos de folclore. O folclore japonês, por exemplo, está repleto de lendas sobre criaturas misteriosas e sobrenaturais, conhecidas como Yokai ou Youkai (aparições misteriosas). Paixão Cortes foi um monumental pesquisador, que levantou lendas, hábitos, canções, danças, vestuário, etc.... da cultura gaúcha desde a fundação do Estado. Se fundou o primeiro CTG (o 35, em Porto Alegre) foi no sentido de criar um lugar onde os homens nascidos no campo, vivendo em Porto Alegre, poderiam reviver coisas antigas de suas vidas na vida campestre, não permitir que se perdesse essa memória, e que ela fosse transmitida a outras gerações. O tradicionalismo hoje existente nos CTGs e o MTG são reducionistas desse tipo de pensamento, criaram uma espécie de seita, toda cheia de regras imutáveis, e inventaram pecados capitais e venais para quem ouse desobedecer seus comandos. Se o Rio Grande do Sul tivesse neste momento mais 10 pessoas similares a Paixão Cortes, mais jovens, com capacidade de produção como ele teve, a história do Estado seria outra, porque a história de um povo é o resultado de sua cultura. Paixão Cortes era um desses homens raros, que se constituem quase uma unanimidade. Causa realmente um forte sentimento de pesar a notícia de sua morte. Ele agora está na campereada eterna.
Nascido em Santana do Livramento em 12 de julho de 1927, filho de pai agrônomo e mãe com dotes musicais, Paixão carregou as duas marcas: formou-se em Agronomia na UFRGS, exerceu a profissão e chegou a ser funcionário da Secretaria de Estado da Agricultura, mas nunca negou a vocação para o trabalho com a música e as danças características da região onde viveu. Em 1939, aos 12 anos, mudou-se com a família para Uruguaiana. Em meados da década de 1940, já estava instaladoem Porto Alegre, onde havia estado pela primeira vez durante o centenário da Revolução Farroupilha, em 1935 — estudando em regime de internato no IPA.
A morte do pai foi decisiva para que se matriculasse no Colégio Júlio de Castilhos. Estudando à noite, já tomado pela ideia de pesquisar e fortalecer os costumes do gaúcho frente à pressão de bens culturais externos como dos Estados Unidos. Firmou parceria com Barbosa Lessa, que descreveria como um “guri pequeno e magrinho”. Ao longo das décadas de 1940 e 50, ao lado de Barbosa Lessa e do Grupo dos Oito (turma de amigos do Julinho empenhados na pesquisa da tradição gaúcha), Paixão Côrtes foi o mentor de uma série de solenidades que visavam a chamar a atenção para os símbolos socioculturais do gauchismo: a Chama Crioula (criada em 1947, como uma extensão da Chama da Semana da Pátria), o Desfile dos Cavalarianos, a Ronda Crioula (que, nos anos 1960, deu origem à Semana Farroupilha), e o primeiro Centro de Tradições Gaúchas, criado em 1948 com o nome de 35, por Côrtes, Barbosa Lessa, Glauco Saraiva e Hélio José Moro.
Não foi à toa que, em 1954, quando da criação da escultura do "Laçador", símbolo do gaúcho, o escultor Antônio Caringi bateu à porta de Paixão Côrtes em busca de um modelo para a estátua que se encontra em frente ao Aeroporto Internacional Salgado Filho. Entre 1949 e 1952, a dupla estudou e catalogou mais de duas dezenas de danças praticadas no Rio Grande do Sul, para fundar, no ano seguinte, o grupo de dança Os Tropeiros da Tradição. As pesquisas também deram origem, em 1956, ao Manual de Danças Gaúchas e ao LP Danças Gaúchas, em que a cantora Inezita Barroso gravou sua voz no que é considerado o primeiro registro em fonograma do resultado das pesquisas dos folcloristas.
Em 1961, a dança levou Paixão a Paris, onde passou cinco meses divulgando a tradição gaúcha em todo tipo de lugar — do Olympia à Sorbonne: "Eu não conhecia nada de Paris, fora uma coisa ou outra de leitura. E não tinha salário lá, porque os meus vencimentos estavam aqui. E, mesmo assim, fiquei cinco meses lá comendo e bebendo e indo pra lá e pra cá, só dançando, só sapateando". Paixão jamais deixou de trabalhar na pesquisa das manifestações culturais identificadas com o Estado. Nos últimos anos seguia trabalhando na organização e sistematização da pesquisa realizada ao longo de toda sua vida, e que gostaria de publicar em uma edição única de aproximadamente 700 páginas. Paixão tinha até um título provisório para a obra, que vinha alinhavando com a ajuda do filho Carlos Paixão Côrtes: "Dançando à Moda dos Antigamentes".
Ele combinava o trabalho com os cuidados à saúde já debilitada: entre o final de 2012 e o começo de 2013, ficou quase quatro meses internado em um hospital devido a complicações de uma diverticulite. Em seus últimos anos, demonstrou mágoa com os rumos do MTG e a condução de duas diretrizes por parte dos dirigentes atuais do movimento. Questionou a “obsessão com o passado” e o “fechamento absoluto para valores a serem descobertos” no presente e, quem sabe, no futuro: "A tradição é algo que brota espontaneamente. No momento em que ganha formas delimitadas, exatas, ela perde a própria razão de ser".
Em 1958 foi inaugurada a estátua do "Laçador". Foram quatro anos entre o concurso e a inauguração da estátua, que, devido ao clamor popular, acabou sendo instalada na entrada de Porto Alegre. Nela, estão representados o gaúcho e sua indumentária típica: tirador, laço, guaiaca, bombacha, lenço, camisa, botas e vincha na cabeça.
Paixão Côrtes era um estudante do Colégio Júlio de Castilhos, em 1947, quando fundou a solenidade que antecipou a Semana Farroupilha. Naquele ano, acompanhado por colegas como Cyro Dutra Ferreira, Cilço Campos, Orlando Degrasia e outros, criara o Departamento de Tradições Gaúchas, ligado ao grêmio estudantil da escola, em um movimento que buscava “regauchar” o Estado. A nota enviada à imprensa na época dizia que o objetivo do departamento era “preservar este legado imenso dos nossos antepassados, constituído do amor à liberdade e da grandeza de convicções representadas pelo sentimento de igualdade e humanidade”.
A Ronda Gaúcha, como foi chamada a série de atividades, teve início em 7 de setembro e se estendeu até o dia 20. Um dos eventos mais significativos foi um piquete que acompanhou a chegada a Porto Alegre dos restos mortais do general farroupilha David Canabarro, vindos de Sant’Ana do Livramento. Ao chegar à Capital, os piqueteiros acenderam uma centelha no Fogo Simbólico da Pátria, e dali fizeram o Candeeiro Crioulo. Era 7 de setembro de 1947. A chama foi levada a cavalo ao saguão do Julinho e mantida acesa em vigília até o dia 20, em homenagem aos mortos na Guerra dos Farrapos.
Em 2017, às vésperas de completar 90 anos, o folclorista anunciou sua despedida da vida pública, para cuidar da saúde. Conforme carta divulgada pela família na ocasião, Paixão seguiria "organizando e enriquecendo seu extenso acervo documental de pesquisas". "É uma alegria ver que uma ideia que nasceu há 70 anos cresceu, multiplicou-se, deixou de ser um pensamento para ser uma ação humana", celebrou Paixão Côrtes.




Figura central no estudo da cultura nativa gaúcha, Paixão Côrtes contribuiu não apenas para documentar os costumes e a arte do homem do campo. Uma faceta menos conhecida do folclorista foi a de pesquisador da música urbana em Porto Alegre. Paixão foi um dos principais responsáveis pelo resgate histórico da Casa Elétrica, gravadora que funcionou na capital gaúcha entre 1913 e 1923, registrando tangos e sambas. A empresa foi fundamental para pesquisadores de todo o País entenderem como se deu o desenvolvimento da tecnologia do disco no País e na América do Sul. Desde os anos 1970, ele tratou do assunto no livro "Aspectos da Música e Fonografia Gaúchas", de 1984 . O registro foi fundamental para não apagar a memória da primeira gravadora de Porto Alegre, considerada a segunda da história do Brasil.
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