O pensador peruano Ricardo Vélez Rodrigues, coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, conhecedor profundo do pensamento e ação positivista, da história do Partido Republicano Riograndense e de seu grande líder histórico, Júlio de Castilhos, ele analisa neste artigo, sobre livro do filósofo gaúcho Denis Rosenfield, a situação crítica do Estado brasileiro no presente momento.
A obra de Denis Rosenfield (O Estado fraturado – Reflexões sobre a autoridade, a democracia e a violência. Rio de Janeiro: Topbooks, 2018, 273 p.) é um balanço, feito à luz da filosofia política e da sociologia, do drama vivido pelo Estado brasileiro nas últimas décadas, notadamente ao longo do ciclo lulopetista (2003-2016), que praticamente desmontou as instituições republicanas. A obra analisa este momento, abarcando as reformas que os Estados europeus sofreram ao longo do século 20, centrando a atenção na saga que a social-democracia percorreu nesse século. Em três capítulos (I – Democracia e autoridade; II – Autoridade estatal e retórica; III – O Positivismo e a política científica) e uma conclusão (A questão democrática), o autor desenvolve uma análise crítica e historiográfica que joga luz sobre os atuais momentos de perplexidade que se abatem sobre a Nação brasileira.
É deveras dramática a situação de anomia vivida pelo Estado brasileiro após o ciclo lulopetista. Tal situação é assim caracterizada pelo autor: “O resultado é evidente: a dissolução da autoridade pública e o enfraquecimento do Estado Democrático de Direito. Ou seja, em nome da democracia e dos direitos humanos, a própria democracia e os direitos humanos são pervertidos” (p. 29).
O desmantelamento institucional patrocinado por Lula e o PT produziu efeitos perversos para a economia do País. Eis a forma em que, sem meias-palavras, o autor denuncia o desmonte da economia nacional: “Do ponto de vista econômico, o País sofreu um processo de intervenção estatal progressiva na seara econômica, sobretudo a partir da segunda metade do segundo mandato do presidente Lula. O Estado foi apresentado como um Poder demiurgo capaz de qualquer realização, conquanto seus recursos fossem também apresentados como ilimitados” (p. 78). A síntese de todos os males encontra-se, segundo o professor Rosenfield, na morte do espírito público, que constituiu uma entropia fatal para as perspectivas do Brasil como nação.
A tarefa de reconstruir as instituições republicanas esfaceladas pela aventura criminosa do PT no poder foi precariamente cumprida pelo transitório governo Temer, em decorrência da presença, no seio do Estado, no atual cenário, de atores políticos comprometidos com a velha ordem de coisas. Qual é a causa remota, situada na origem do Estado moderno, que, retomada na nossa tradição republicana, deu ensejo às atuais aventuras do populismo lulopetista, que se irmanam a outras desgraças vividas atualmente por povos latino-americanos, como o cubano, o venezuelano e o nicaraguense?
Para o professor Rosenfield, o caminho errado tomado no Brasil pelo PT e coligados decorre de uma deformação da tradição social-democrata, que já tinha acontecido em alguns países europeus ao ensejo do esforço de reconstrução no segundo pós-guerra. A velha tradição liberal (que tinha animado aos social-democratas no início do século 20 com as reformas comandadas na Alemanha por Edward Bernstein) foi sendo em parte posta de lado, dando ensejo a um estatismo que crescia sobre os direitos individuais.
De maneira semelhante, na tentativa em prol de garantir o bem-estar geral no seio do Welfare State, os nossos socialistas consideraram que o caminho deveria ser o da hipertrofia do Estado. O Estado de Bem-estar Social poderia avançar, com legitimidade, sobre a propriedade dos cidadãos mais abastados, na tentativa de criar uma nova classe média com os outrora marginalizados e pobres.
O Estado inchado tinha legitimidade, em decorrência de os governantes petistas terem sido eleitos. O castilhismo, no Rio Grande do Sul, argumentava de forma parecida. Júlio de Castilhos defendia-se da acusação de ter-se desviado do constitucionalismo adotado na Carta de 1891, com o estatismo que tornou todos os poderes públicos reféns do Executivo. Ora, os reformadores castilhistas eram legítimos pois tinham sido eleitos!
Considero, contudo, que o arrazoado do professor Rosenfield não foi completo. Faltou analisar a fonte primeira desta tentativa estatizante surgida no seio do pensamento social-democrata. O precursor dos doutrinários, Benjamin Constant de Rebecque (em Principes de Politique, Paris: Hachette, 1997) colocou o dedo na ferida quando atribuiu a Rousseau a torta ideia de que a soberania popular não tem limites por ter emergido da “vontade geral”. Essa é, no meu entender, a causa da deturpação do sentido do republicanismo brasileiro, como deixei exposto na minha obra "Castilhismo, uma filosofia da República", 2.ª edição, apresentação de Antônio Paim, Brasília: Senado Federal, 2010.
Quando os positivistas derrubaram a monarquia, fizeram-no a partir da convicção de que o poder estabelecido não tem limites pelo fato de encarnar a “vontade geral”. A aplicação sistemática desse princípio positivista à política nacional ocorreu por obra de Getúlio Vargas, que materializou a ideia da ausência de limites para a soberania, herdada do castilhismo. O Estado getuliano tornou-se uma entidade mais forte do que a sociedade, pelo fato de ter-se ancorado na ciência aplicada mediante os Conselhos Técnicos Aplicados à Administração.
À luz do Estado tecnocrático se justificariam todas as medidas excepcionais tomadas pelos donos do poder para financiar as operações do lulopetismo, como as pedaladas fiscais. E se explica, assim, de outro lado, a desfaçatez lulista que acha que não deve prestar contas a ninguém pelo fato de ter sido eleito. A soberania é limitada e se restringe à gestão do Estado no sentido de preservar os direitos inalienáveis dos cidadãos, que continuam gozando dos seus direitos à vida, à liberdade e às posses.
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