domingo, 12 de junho de 2016

Ex-militar chileno será julgado nos Estados Unidos pela morte do músico comunista Victor Jara

Os fantasmas da brutal ditadura chilena (1973-1990) povoarão um tribunal da Flórida, onde terá lugar o julgamento de um militar processado pela família do cantor popular Victor Jara, morto a tiros após ser torturado, há mais de quatro décadas. A família do músico está processando o ex-tenente Pedro Pablo Barrientos Núñez com base na alegação de que o oficial era o responsável pelos soldados no estádio onde Jara foi torturado e morto nos dias seguintes ao golpe que levou Augusto Pinochet ao poder em 1973. Barrientos se mudou para os Estados Unidos em 1989 e vive hoje na Flórida. O início do julgamento está marcado para a próxima segunda, num tribunal federal em Orlando, a quase 6.500 quilômetros do local onde Jara desapareceu e foi morto. 


A mulher da Jara, Joan, sua filha, Amanda, que tinha 8 quando o pai morreu, e sua enteada, Manuela, que tinha 13, entraram com o processo sob a Lei de Proteção à Vítima de Tortura dos Estados Unidos, que permite ações civis contra torturadores. Em um comunicado, Joan Jara disse que o julgamento se estende a todos os que passaram tantas décadas procurando por respostas sobre seus seres amados que foram torturados, desaparecidos ou mortos sob o regime de Pinochet. Victor Jara era um cantor popular e ativista político comunista que havia feito campanha para o socialista Salvador Allende, eleito presidente do Chile em 1970. Os esforços de Allende pela estatização de indústrias, incluindo a retomada de empresas mineradoras norte-americanas que exploravam o cobre no Chile, atraiu a oposição no país e nos Estados Unidos, que se opunham à influência esquerdista na América Latina durante a Guerra Fria. Em setembro de 1973, o general Augusto Pinochet (1915-2006) orquestrou um golpe contra o governo de Allende. O presidente acabou se suicidando após o naufrágio da resistência ao golpe dentro do Palácio de La Moneda, sede do governo chileno. Pinochet e a junta militar que ele liderou fecharam o Congresso e extinguiram partidos de oposição e sindicatos. Soldados passaram a perseguir os apoiadores de Allende e outros inimigos ideológicos do regime, enviando-os ao Estádio Nacional, onde muitos eram torturados ou desapareciam. Anos mais tarde, comissões estabeleceram em 3.200 o número de mortos ou desaparecidos, além de dezenas de milhares de pessoas torturadas, presas ou interrogadas, durante a ditadura chilena. Em um relatório de 2000, a CIA (agência norte-americana de inteligência) declarou que tinha informação de que o golpe estava sendo tramado, mas que não o havia instigado. O texto do processo aberto pela família Jara sustenta que a música e as convicções políticas do cantor, que enfatizavam a desigualdade social no país, constituíam uma ameaça ao nascente governo pinochetista. Victor Jara foi preso numa ofensiva militar à universidade onde ele trabalhava e foi levado ao Estádio Nacional, que havia sido transformado numa prisão improvisada para cerca de 5.000 detentos. Num dos vestiários do subsolo, ele apanhou brutalmente e levou mais de 40 tiros, inclusive na cabeça, segundo o processo. Barrientos e os soldados sob seu comando estavam entre os militares destacados para o estádio, ainda segundo o texto do processo, que afirma que o réu era o responsável pela detenção em massa no estádio. O advogado de Barrientos, Luis Calderón, não quis se pronunciar antes do julgamento. Nos papéis da defesa, Barrientos argumenta que a queixa da família de Jara deveria ser levada a um tribunal chileno. Sua defesa argumenta ainda que os Jara abandonaram o depoimento de uma testemunha que havia previamente dito que Barrientos havia atirado em Jara durante uma roleta russa, o que levantara dúvidas sobre a responsabilidade efetiva do então tenente na morte do músico. Para a defesa, tais alegações genéricas não comprovam que Barrientos teria agido de maneira calculada ou intencional para conduzir tortura e execuções. Em 1978, Joan Jara tentou abrir uma investigação penal no Chile, mas seus esforços foram impedidos por uma lei que garantiu a anistia aos que haviam cometido crimes entre 1973 e 1978. Em 2012, o Tribunal de Apelação de Santiago declarou Barrientos culpado da morte de Jara, mas não pôde ir adiante com a acusação, porque a lei chilena não permite julgamentos a revelia, o que exauriu as possibilidade da família diante da Justiça do país, segundo o texto do processo. Parentes de vítimas do regime de Pinochet tiveram sucesso em outras causas contra oficiais militares. Em 2003, um tribunal de Miami concedeu uma indenização de US$ 4 milhões à família de um economista chileno morto por um esquadrão militar conhecido como Caravana da Morte. Além de obter reparação, o mais importante no processo da família Jara é jogar luz sobre o que aconteceu aos detentos no estádio, disse Dixon Osburn, diretor-executivo da ONG Center for Justice & Accountability, que auxiliou as famílias tanto naquele caso como neste. Durante sua prisão no estádio, que durou três dias, Jara escreveu seu último poema que, segundo o processo, foi entregue a sua mulher por outro detento. Nele, o cantor dizia: "Como me sai mal o canto / quando tenho que cantar o espanto! // Espanto como o que vivo/ como o que morro, espanto".

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