domingo, 10 de outubro de 2010

Agressão ao meio ambiente – juiz interdita condomínio horizontal em Atlântida (5)

(...) 3. Conclusão
Do que foi apurado, através da fiscalização, o empreendedor Metagon Incorporações e Loteamento Ltda, realizou terraplanagem em área de incidência de espécies da fauna nativa, sem nenhuma medida que minimizasse os impactos ocasionados pela destruição total daquele ambiente que tinha como uma de suas funções a manutenção de ambiente favorável às espécies da fauna nativa que ali permaneciam. Foi identificado a incidência do tuco-tuco branco, espécie em extinção, que tem seu habitat nas dunas frontais. Não houve estudo de viabilidade da remoção, caso fosse possível, da fauna silvestre do local, pelo contrário, as espécies foram obrigadas a se retirarem quando do aterramento realizado pelo empreendedor. A destruição parcial da duna, que só não foi concretizada por completo graças a intervenção da Brigada Militar, contraria a própria Licença expedida pela FEPAM, embora a área onde se localiza a duna, está licenciada para o empreendimento (fls. 166-170, grifei). Prosseguindo, houve relatório de vistoria feito por geólogo e por biólogo do Ministério Público Estadual, em 08/02/08 (fls. 179-190). Este relatório contém importante contribuição da perspectiva da biologia e da geologia para comprovar a relevância ambiental da área e o desacerto dos estudos utilizados pela FEPAM para descaracterizar o curso d'água ali existente. Reporto-me ao documento em sua íntegra, transcrevendo aqui algumas passagens que indicam a insuficiência do licenciamento ambiental da FEPAM e os danos que a intervenção do empreendedor causou àquele ambiente: A caracterização do litoral (ou planície costeira) como uma região geologicamente jovem, arenosa e pobre em nutrientes, com dinâmica sedimentar praial e eólica ativa e um lençol freático tão raso permite enquadrá-la como uma área ambientalmente frágil e muito suscetível a impactos ambientais negativos. Tais esforços deveriam suscitar esforços no sentido de sua preservação, e jamais ensejar o pretendido pelos engenheiros civis do IPH, uma diminuição da importância da área e um incentivo à sua urbanização e transformação em condomínios fechados (fls. 180, grifei). Apesar de terraplanada e sem sua vegetação original, a área ainda apresentava algumas aves típicas de regiões costeiras como batuíras (Charadrius sp) e piru-pirus (Haematopous palliatus) que são animais que se alimentam de pequenos invertebrados ocorrentes em águas rasas, ou seja, é provável que ainda estivessem em busca de alimento em um local que, anteriormente, apresentava esse tipo de recurso (fls. 184). A retificação de um curso d'água sinuoso que apresentava margens alagáveis e vegetação densa, a qual evitava processos erosivos, permitirá que a vazão da água ocorra de forma mais veloz, especialmente, em períodos chuvosos, podendo alterar a foz junto às dunas frontais. As pequenas lagos que se formavam junto às dunas e que serviam de suporte à vida de animais como anfíbios, insetos aquáticos, dentre outros, serão alteradas (fls. 186, grifei). A seguir, são fornecidas algumas sugestões de medidas de recuperação do ambiente degradado: 1- Restauração de faixa de, pelo menos, 30 metros de largura em cada margem do curso d'água que foi retificado com utilização de vegetação nativa adaptada à área em questão, através de projeto elaborado e acompanhado por técnico habilitado com competência na área de conhecimento sobre comunidades vegetais litorâneas e emissão de ART; 2- Preservação das áreas de dunas com distância mínima de 60 metros contados a partir da base da face continental da duna; 3- Monitoramento das variações da superfície potenciométrica do lençol freático, por meio de piezômetros, para que o diagnóstico da área contemple também medições correspondentes ao período de inverno, sob a responsabilidade de técnicos habilitados e emissão de ART (fls. 189, grifei). Conclusão: O empreendimento alterou áreas de preservação permanente que deveriam ter sido conservadas (fls. 189, grifei). Mesmo diante das evidências de erro em seu licenciamento, a FEPAM respondeu em 17/03/08 ao Ministério Público Estadual, dizendo que "licenciou o empreendimento com a apresentação de condições e restrições aplicando as medidas de gestão que entendia cabíveis para a situação da área em questão, face aos laudos técnicos e projetos apresentados além de outros documentos técnicos juntados os processos administrativos o que redundou na firmatura de Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Estadual" (fls. 208, grifei). Portanto, aquele licenciamento feito pela FEPAM não subsiste juridicamente porque: (a) desconsidera as características da área do empreendimento (área de preservação permanente); (b) desconsidera as próprias manifestações técnicas anteriores da FEPAM; (c) desconsidera a restrição 1.7.1 da LP 695/2006-DL de fls. 130; (d) não assegura adequada proteção ao ambiente, à fauna silvestre e à flora nativa; (e) permite que o empreendedor intervenha em área ambientalmente frágil e relevante, sem os cuidados e medidas necessárias. Terceiro, o tratamento dispensado às corujas-buraqueiras pelo réu-empreendedor, com a complacência da FEPAM, é um dos muitos pontos que demonstra a irregularidade do licenciamento. Examinando os autos, encontrei diversos relatórios apresentados pelo réu-empreendedor quanto a corujas-buraqueiras atingidas pela instalação do empreendimento (fls. 413-421, 422-430, 451-461). Pensando em como as corujas foram tratadas pelo empreendedor e FEPAM, lembrei do casal de corujas-buraqueiras que mobilizou a opinião pública gaúcha e impediu a queima de fogos de artifício na noite de 31 de dezembro de 2007 na praia de Capão da Canoa. Os fatos foram noticiados pela Zero Hora de 1º de janeiro de 2008: Fogos de artifício são cancelados em Capão da Canoa - Patrulha ambiental não autorizou a queima dos materiais devido a um ninho de corujas A festa à beira-mar com fogos de artifício no Réveillon de 2008 acabou sendo cancelada à meia-noite desta segunda-feira em Capão da Canoa. A patrulha ambiental não autorizou que o material fosse detonado próximo a um ninho de corujas em uma duna ao lado do calçadão. Muitas pessoas vaiaram e saíram da praia depois que o cancelamento foi confirmado. Entretanto, a maioria seguiu na Avenida Beira-Mar aproveitando os shows no palco montado pela prefeitura e posteriormente o som dos carros. Segundo o Batalhão Ambiental da Brigada Militar (BM), a prefeitura não apresentou a licença ambiental para que o evento fosse realizado em cima das dunas e próximo ao ninho de corujas. A queima de fogos teria duração de 12 minutos. Foi organizada pela prefeitura, que gastou R$ 26 mil. Por volta das 18h de segunda-feira, o comandante do 1º Batalhão Ambiental da BM, major Luiz Eduardo Ribeiro Lopes, exigiu a apresentação de uma licença ambiental para que a queima de fogos pudesse ocorrer. Segundo ele, o local escolhido para a instalação dos rojões ficava em uma área de preservação permanente e próximo ao ninho, o que obrigaria a necessidade de uma liberação ambiental. “Desde a tardinha, algumas pessoas da comunidade nos procuraram alertando sobre um ninho de corujas. De posse disso, verificamos que, de fato, estava muito próximo. Foram colocados fogos em cima das dunas de areia, área de preservação permanente, sem licenciamento ambiental. Informamos a empresa e a prefeitura para modificar o local dos fogos, mas eles não se agilizaram”,  explicou o major Lopes. O prefeito de Capão da Canoa, Jairo Marques, informou que a prefeitura não tinha a licença porque ela nunca foi exigida. Nos anos anteriores, o espetáculo ocorria no mesmo local, mas não havia a presença das corujas. O prefeito ressalta que a empresa contratada para a instalação e detonação dos fogos tinha laudo dos bombeiros que exigia isolamento da área, o que foi cumprido. Para atender a recomendação do Batalhão Ambiental, que pediu que os rojões fossem afastados mais cem metros, Marques destaca que os fogos foram deslocados o máximo possível dentro da área de segurança. Às 23h, como a licença não havia sido providenciada e o deslocamento dos fogos foi considerado pouco, o comandante do Batalhão Ambiental solicitou um laudo de um biólogo que informasse que as corujas não seriam prejudicadas pelo barulho. O prefeito ressalta que tentou localizá-lo, o que não foi possível. Faltando cinco minutos para a meia-noite, quando os responsáveis pela apresentação do evento da virada anunciaram a não-realização do show pirotécnico, o público presente vaiou e muitos deixaram o local. O material foi recolhido. O prefeito tenta achar um fim para a quantidade de fogos adquirida. Ele disse ainda que a queima de fogos ocorreu no mesmo lugar em 2007. “É um local que fica isolado, seguro. Ano passado se fez ali, não teve problema nenhum. Tomaram essa atitude porque à tarde receberam ligações sobre o ninho”, completou. A polêmica se arrastou pelos dias seguintes, mobilizando a sociedade gaúcha. Uns favoráveis, outros contrários. Passado um ano do episódio, as corujas-buraqueiras de Capão da Canoa ainda eram notícia na imprensa gaúcha. Em 28/12/08, o jornal Zero Hora noticiou: Réveillon distante das Corujas - Depois de cancelar a festa do ano passado por causa dos ninhos, prefeitura programa fogos para outro ponto da orla. As temperamentais corujas venceram de novo. Zoio e Zóia, as corujas-do-campo que se alçaram ao estrelato ao barrar a queima de fogos à beira-mar de Capão da Canoa no ano passado, deslocaram a festa do próximo Réveillon sem precisar bater uma única asa. Por causa delas, o ponto previsto pelo prefeito Jairo Marques para a instalação da bateria de fogos foi transferido para cerca de 200 metros de distância das dunas onde os bichos construíram seu ninho. Será nas proximidades das casas do programa Verão Legal, do governo estadual. A queima deve durar 10 minutos e será seguida por apresentação de grupos musicais. Os foguetes só serão disparados depois de uma vistoria do Corpo de Bombeiros no dia programado para a festa. - É um procedimento para verificar se todas as questões de segurança estão atendidas, como a distância da área de proteção ambiental e das pessoas - explica o comandante do subgrupamento de Combate a Incêndio de Capão, capitão Renato Pereira de Souza. Pois bem, esse tratamento dispensado às duas corujas de Capão da Canoa em 31/12/07 contrasta com aquele dispensado na mesma época à população da mesma espécie de corujas que tinha ninhos no local. O tratamento que o empreendedor e a FEPAM dispensaram às corujas do empreendimento foi este: (a) as licenças ambientais nada mencionam quanto às corujas ou à proteção da fauna local (LP 695/06 de fls. 130-131, LI 811/07 de fls. 784-786 e LI 952/07 de fls. 162-164). Nenhum cuidado foi exigido do réu-empreendedor. Nenhuma restrição ou condição foi imposta pela FEPAM. É como se não existissem corujas ou outros animais silvestres no local em que seria instalado o empreendimento. Aterro e terraplenagem foram autorizados sem restrição ou condição específica quanto às corujas-buraqueiras; (b) em fevereiro de 2008, como as corujas-buraqueiras insistiam em permanecer em seus ninhos no local, apesar das obras estarem em andamento, não foi mais possível ignorar sua existência. O profissional contratado pelo réu-empreendedor relata: "na área do empreendimento Playa Vista grande parte do espaço destinado à implantação do condomínio já sofreu modificações pela ação do maquinário, a exemplo de aterros e terraplanagem. No espaço do terreno ainda não modificado pelas obras foram observados três casais de A. cunicularia, bem como dois ninhos dessas aves. Observou-se ainda um terceiro ninho em início de construção. A partir de uma ligeira observação dessas covas não se constatou a presença de ovos e particularmente de filhotes. No entanto, deve ser ressaltado que não foi possível observar o fundo da cova, considerando que os túneis que levam ao ninho propriamente dito foram escavados de forma oblíqua, impedindo assim a visão adequada do seu interior. De qualquer forma, observou-se que os ninhos estão sendo utilizados pelas aves, tendo em vistas seus regurgitos característicos encontrados no entorno das covas" (grifei, fls. 415). Ou seja, as corujas insistem em permanecer. Apesar do maquinário. Apesar dos aterros. Apesar da terraplenagem. Apesar do condomínio. Não restou ao empreendedor outra saída senão reconhecer a existência daquelas teimosas corujas. Entretanto, essa admissão de existência foi feita de forma superficial e precária porque bastou "uma ligeira observação" para apontar que os ninhos estavam vazios, ainda que "não foi possível observar o fundo da cova". Ora, não merecem crédito tais afirmações do biólogo porque superficiais: não bastava uma "ligeira observação", deveria observar "o fundo da cova". As corujas-buraqueiras não podem ser prejudicadas por construírem seus ninhos com engenho: "os túneis que levam ao interior dos ninhos foram escavados de forma oblíqua, impedindo assim a visão adequada do seu interior". O que esperava o biólogo do empreendedor? Que as corujas não protegessem seus ninhos e sua espécie, seus ovos e filhotes? Mesmo sendo superficial o exame, o biólogo não teve como negar a realidade: "os ninhos estão sendo utilizados pelas aves"; (c) é inegável que as obras do condomínio afetam e colocam em risco as corujas-buraqueiras que habitam o local do empreendimento. É o biólogo do empreendedor quem afirma: "Tendo em vista que as obras decorrentes do empreendimento Playa Vista colocam em risco alguns exemplares de coruja-buraqueira, considerando a presença de ninhos no terreno a ser diretamente afetado pelas obras, é necessário que sejam tomadas medidas de proteção de ovos ou filhotes que porventura possam ser encontrados, de modo a garantir a proteção desses espécimes da ação antrópica, de acordo com a Lei 5.197 que dispõe sobre a proteção da fauna silvestre" (fls. 416), sendo que "com o avanço das obras sobre o terreno e sua eminente modificação certamente toda a fauna hoje presente no local gradativamente deixará de ocupar esse espaço, devendo procurar ambientes próximos ou mais distantes cujas características sejam respectivamente adequadas. Isto certamente também ocorrerá com os espécimes adultos de coruja-buraqueira presentes na área" (fls. 416, grifei); (d) a implantação do empreendimento prosseguia, com 90% da terraplenagem realizada, mas sem que aqueles teimosos animais silvestres (corujas-buraqueiras) abandonassem o local, onde não eram mais bem-vindas pelo empreendedor: "Em nossa última visita à área do empreendimento verificou-se um estado já bastante avançado das obras, que incide aproximadamente em 90% de seu espaço total. Houve grande movimentação de areia pelo maquinário, terraplanagem e outras atividades relacionadas à preparação do terreno. Neste contexto, uma estreita faixa dessa área permanece isolada das obras, como forma de manter preservadas as tocas de A. cunicularia presentes no local. (...) No espaço isolado das obras encontram-se três tocas de A. cunicularia aparentemente ativas, considerando a proximidade dos animais em relação a essas estruturas. Entretanto, a diminuição do número de egragópilas no entorno das tocas em comparação a quantidade anteriormente encontrada, parece indicar um gradativo abandono do local frente à acentuada presença humana na área e circulação de veículos pesados utilizados nas obras. Durante nossas últimas observações foram encontrados dois pares de indivíduos na proximidade de suas respectivas tocas. Um trabalho de inspeção realizado nos ninhos mostrou que, embora as tocas possam estar sendo utilizadas pelas aves adultas, não existe no momento atividade reprodutiva dos animais. Pode-se averiguar que as tocas encontram-se vazias, sendo que a inspeção dos seus interiores confirmou a total ausência de ovos ou filhotes, bem como qualquer outro tipo de elemento, a exemplo de material orgânico para sua forração" (grifei, fls. 425). E conclui o biólogo do empreendedor, prevendo que em curto espaço de tempo o empreendedor terá vencido as corujas: "Embora a área do empreendimento tenha sido um ambiente adequado ao refúgio e nidificação de espécimes A. cunicularia, vale ressaltar que a intensificação das atividades humanas no local deverá alterar completamente as condições locais. Nesta perspectiva, é bastante provável que em curto prazo ocorra o abandono da área pelos indivíduos hoje residentes. A constatação de que nas tocas de A. cunicularia atualmente não se desenvolvem atividades reprodutivas, exclui a possibilidade de perda de ovos ou filhotes perante o eventual abandono da área pelos indivíduos adultos. Por fim, considerando o provável abandono do local pelas aves, à medida que as atividades das obras se intensifiquem ao redor do local ainda isolado das intervenções antrópicas, julgamentos pertinente recorrer ao método passivo de relocação, seguindo a proposta de Trulio (1995). Essa estratégia consiste na criação de ninhos artificiais, que deverão ser estabelecidos em locais passivos de proteção, à uma distância mínima de 100 metros dos ninhos a serem destruídos" (grifei, fls. 426). Ou seja, como as corujas-buraqueiras insistiam em permanecer no local, o biólogo recorre à retórica para expressar sua opinião técnica: a observação tinha sido "ligeira" no laudo anterior, sem condições de perscrutar o interior dos ninhos. No novo laudo aquilo se transforma em conclusão definitiva: não existe atividade reprodutiva nos ninhos. Existe apenas a teimosia das corujas-buraqueiras, que permanecem próximas aos antigos ninhos, apesar das máquinas, do aterro, da terraplenagem, das previsões do biólogo, do desejo do empreendedor, da complacência da FEPAM; (e) embora as obras avancem, a previsão do biólogo não se concretiza: em março de 2008 as corujas-buraqueiras permanecem nos ninhos e ainda assombram o empreendimento. O biólogo tenta explicar o motivo da insistência: "A área de abrangência do Condomínio Residencial Playa Vista, anteriormente a sua fase de implantação, parece ter representado um local importante para a ocorrência de indivíduos de coruja-buraqueira, o que poderia estar associado a fatores como: * oferta de locais adequados para a construção de abrigos; * oferta de fontes de alimentação; * ausência de predadores; * ausência de espécies competidoras pelo mesmo recurso. Entretanto, o estágio avançado das obras já reduziu sobremaneira o espaço antes ocupado pelas corujas, modificando totalmente a superfície do terreno com atividades de nivelamento do solo e terraplanagem. Resta hoje no local, apenas uma pequena área onde a atividade do maquinário ainda não foi levada a efeito, coincidindo de forma proposital com o espaço onde tocas de coruja-buraqueira encontram-se presentes nessa área" (grifei, fls. 454). A leitura atenta da linguagem do biólogo deixa transparecer o desconforto do empreendedor com a presença daqueles animais no local. O "parece ter representado", a descrição do "estágio avançado das obras" e o "coincidindo de forma proposital" indicam o desconforto dos interessados com a insistência daqueles pequenos animais, que teimam, permanecem e prejudicam a conclusão do empreendimento; (f) em fevereiro de 2008, o biólogo previa que em curto espaço de tempo as corujas liberariam o local do empreendimento para conclusão das obras. Em março de 2008, o abandono ainda não ocorreu. Pior ainda, em agosto de 2008, oficial e tecnicamente as corujas já tinham sido relocadas, mas ainda não ocupavam os ninhos artificiais colocados à sua disposição pelo empreendedor. Está dito no relatório ambiental do empreendimento, datado de 19 de agosto de 2008: "as corujas buraqueiras foram relocadas com a instalação de seis ninhos artificiais instalados na área de frente a área do Condomínio, ao lado do ShowroomAinda não foi registrada ocupação dos ninhos artificiais" (grifei, fls. 1018). Como assim? Se as corujas "foram relocadas" mas ainda "não ocuparam os ninhos artificiais", onde elas estão? Como foram relocadas se ainda não ocuparam os ninhos artificiais? Seus ninhos naturais foram destruídos, elas insistem em permanecer ali, não ocupam os ninhos artificiais situados próximos ao showroom do empreendimento, e o relatório do empreendedor diz que "foram relocadas"? Muito precisa ser explicado pelo empreendedor: se as corujas-buraqueiras foram relocadas, por que os ninhos artificiais ainda não estão ocupados? Será que elas se adaptaram aos ninhos artificiais construídos com tubos de PVC de fls. 1019-1020? Será que fotos coloridas como aquelas de fls. 1018-1021 são suficientes para comprovar o sucesso da operação de relocação das corujas? Onde está um parecer técnico por profissional especializado e competente, dando detalhes dos procedimentos e atestando que a população de coruja-buraqueira foi adequadamente manejada? Será que ninhos artificiais próximos ao showroom do empreendimento são adequados? Será que esse showroom não é local constantemente iluminado, prejudicando o sossego das corujas? Será que esse showroom não é local constantemente visitado por interessados na aquisição de imóvel no condomínio? Será que potencial comprador que visite o showroom do empreendimento também pode conhecer os ninhos artificiais construídos com tubos de PVC? Será que as corujas são mostradas pelos corretores aos potenciais compradores dos lotes? Será que as corujas-buraqueiras aceitam trocar ninhos por canos de PVC, ainda mais quando o "buraqueiro" faz parte do seu nome? Nada disso foi explicado pelo empreendedor. Pior: nada disso foi cobrado pela FEPAM; (g) comprovando o descaso com o destino das corujas-buraqueiras que insistiam habitar aquele local, o relatório ambiental feito pelo réu-empreendedor no mês seguinte (em setembro de 2008) sequer menciona as corujas-buraqueiras ou qualquer cuidado que se devesse ter com elas (fls. 1148-1176). Desapareceram as corujas? Morreram as corujas? Mataram as corujas? Ou foram abandonadas à própria sorte, sem direito à proteção pela FEPAM ou órgãos ambientais? Aceitaram os ninhos artificiais de PVC junto ao showroom do empreendimento? Realmente, não existe notícia sobre o destino daquelas corujas-buraqueiras que tinham ninhos no local do empreendimento. Mas o tratamento que receberam foi cruel. Primeiro, a FEPAM ignorou sua existência. Depois, o empreendedor iniciou as obras. Como elas não abandonassem o local (onde estavam seus ninhos e seus lares), houve a tentativa de relocá-las com ninhos artificiais de tubos de PVC colocados próximos ao showroom. (Certamente área nobre do empreendimento!) Mas as corujas-buraqueiras não ocuparam os ninhos artificiais e não aceitaram a relocação. Finalmente, voltam a serem ignoradas. Provavelmente, sofrerão, morrerão e pronto. Isso é licenciamento ambiental? Fiz referência às corujas de Capão da Canoa para mostrar a diferença gritante no tratamento dispensado pelos órgãos ambientais às duas situações ocorridas na mesma época no mesmo litoral. Em Capão da Canoa, a Polícia Ambiental impede fogos de artifício na noite de 31/12/07 porque não há licença da FEPAM e porque isso poderia prejudicar o sossego de um casal de corujas-buraqueiras que tem ali seu ninho. Em Xangri-lá, na mesma época, a FEPAM ignora várias corujas-buraqueiras e autoriza a destruição de seus ninhos com a licença de instalação. Com aparência de legalidade, o empreendedor cumpre a licença ambiental, destrói os ninhos e tenta legitimar sua atuação com a tentativa de relocar as corujas para ninhos artificiais de PVC próximo ao showroom do empreendimento. Esse pequeno (mas relevante) ponto foi ignorado pelo licenciamento da FEPAM. Esse pequeno detalhe contrasta com a tradição deste Estado na defesa ambiental. Como dizer jurídico, legítimo e justo licenciamento ambiental que ignora questão relevante como essa? Se o licenciamento peca em questão básica (proteção da fauna silvestre), temos fortes indícios de que não pode subsistir. Por esse e outros motivos, o licenciamento é nulo. Quarto, o licenciamento do empreendimento não foi precedido pelo necessário EIA/RIMA. O empreendimento se situa na zona costeira, tanto que parte do terreno foi desmembrada como área de dunas frontais na matrícula imobiliária (fls. 1271-1274). Portanto, não se trata de simples terreno urbano e o respectivo licenciamento não se submete apenas às regras gerais de uso de solo urbano. Por se localizar em zona costeira, o local está sujeito às regras específicas previstas na Lei 7.661/88, inclusive quanto ao disposto em seu art. 6º: Art. 6° O licenciamento para parcelamento e remembramento do solo, construção, instalação, funcionamento e ampliação de atividades, com alterações das características naturais da Zona Costeira, deverá observar, além do disposto nesta Lei, as demais normas específicas federais, estaduais e municipais, respeitando as diretrizes dos Planos de Gerenciamento Costeiro. § 1° - A falta ou o descumprimento, mesmo parcial das condições do licenciamento previsto neste artigo serão sancionados com interdição, embargo ou demolição, sem prejuízo da cominação de outras penalidades previstas em lei. § 2° - Para o licenciamento, o órgão competente solicitará ao responsável pela atividade a elaboração do estudo de impacto ambiental e a apresentação do respectivo Relatório de Impacto Ambiental - RIMA, devidamente aprovado, na forma da lei (grifei). Portanto, o licenciamento do empreendimento necessariamente deveria ser precedido de EIA/RIMA, aprovado na forma da lei, o que não foi observado. É irrelevante discutir o tamanho do empreendimento, se inferior ou superior a 100 hectares, porque a exigência do art. 6º-§ 2º da Lei 7.661/88 não estabelece possibilidade de dispensa da exigência, referindo-se a cláusula "na forma da lei" tão-somente à aprovação do EIA/RIMA, não à sua exigência. O EIA/RIMA deve ser apresentado nas hipóteses do caput do art. 6º da Lei 7.661/88, no qual está incluída a atividade que o empreendedor pretendeu licenciar. Se não tem EIA/RIMA, o licenciamento é irregular e o empreendimento não pode prosseguir enquanto não regularizada a situação. A exigência do EIA/RIMA não é extravagante nem supérflua, principalmente considerando a possibilidade de interferência do empreendimento sobre a zona costeira juntamente com outros condomínios em construção. Basta referir que existe condomínio contíguo ao discutido nesta ação, que também se encontra em fase de implantação e apresenta impactos significativos sobre as dunas, conforme mostrado pelo Ministério Público Federal. Somente um EIA/RIMA teria condições de mensurar os reflexos que os diversos condomínios em implantação terão sobre a zona costeira gaúcha, especialmente quanto às dunas, fauna e flora locais. Ainda, como dito pelo Ministério Público Federal, o licenciamento ambiental do empreendimento "deveria ter levado em consideração a existência de inúmeros outros empreendimentos com as mesmas características na área do entorno do empreendimento, em razão dos evidentes prejuízos ambientais cumulativos que virão a ser causados", como por exemplo o condomínio contíguo, La Plage, que interfere na feição das dunas existentes naquela área de preservação permanente, e os condomínios Loteamento Arpoador Las Dunas, que sequer foram considerados embora vizinhos (fls. 1116-1120). Reporto-me ao que foi dito pelo Ministério Público Federal: "o processo de licenciamento do condomínio Playa Vista deve exigir a apresentação de Estudo de Impacto Ambiental que considere a realidade existente no Município e a presença de todos os condomínios residenciais existentes nos limites do local onde está sendo inserido o empreendimento" e que se deve "inverter a lógica que está sendo apresentada pela FEPAM e pelo empreendedor. Querem fazer crer os réus que, pelo fato de haver outras ocupações irregulares no litoral não poderiam ser impostas restrições ao empreendimento Playa Vista. Pelo contrário. O pensamento deve ser justamente o oposto, no sentido de que existência de outros projetos ou empreendimentos irregulares devem limitar outras irregularidades ambientais" (fls. 1120). Quinto, quanto ao sambaquis, o Ministério Público Federal alegou existirem indícios de que a área pudesse conter resquícios de sambaquis e isso justificaria a paralisação das atividades. Entretanto, não ficou esclarecida a intervenção do IPHAN e a omissão do empreendedor, que somente apresentou relatório de monitoramento arqueológico depois de notificado para fazê-lo (fls. 963-970). Mas quanto a isso - embora relevante o fundamento para julgamento desta ação civil pública -, não existem elementos probatórios suficientes para deferimento de liminar por este motivo contra o empreendedor porque: (a) o empreendedor apresentou relatório de monitoramento arqueológico (fls. 963-970), concluindo pelo baixo interesse arqueológico da área e não havendo crítica relevante àquele relatório; (b) não foram trazidos outros elementos de prova que apontassem o interesse arqueológico específico daquela área, não servindo para tanto os elementos trazidos pelo Ministério Público Federal (fls. 1258-1260) que não se referem propriamente ao local do empreendimento, mas a sítios localizados em vila do Guará e Morro dos Índios, em Xangri-lá; (c) a questão dos sambaquis e preservação de sítios arqueológicos no litoral norte do Rio Grande do Sul é objeto de inquérito civil público em tramitação no Ministério Público Federal desde 2007 (fls. 1254-1257), nada indicando existirem elementos concretos que justifiquem intervenção liminar naquele local.

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