Estatais russas e venezuelanas usaram uma rede de intermediários com base em paraísos fiscais para criar empresas e fazer transferências milionárias que, agora, são alvos de suspeitas. Documentos detalhando essas transações estão hoje nas mãos do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, enquanto investigadores na Europa também buscam respostas sobre indícios considerados “atípicos”.
As economias de Venezuela e Rússia têm como base a exploração de gás e petróleo. No esquema montado entre ambas, portanto, as empresas que fazem o dinheiro circular são o braço financeiro da estatal russa Gazprom, o Gazprombank, e a venezuelana PDVSA. As duas gigantes do setor energético se uniram, com a participação de uma terceira empresa, a Derwick Oil & Gas, registrada em Barbados. Documentos revelam que a Derwick já teve papel importante em um esquema de corrupção e lavagem de dinheiro usando a PDVSA. Em 2009 e 2010, a Derwick subornou funcionários do governo comuno-bolivariano chavista para conseguir 12 contratos públicos na Venezuela. Os contratos eram terceirizados e executados pela Pro Energy Services, uma empresa com base no Estado do Missouri, nos Estados Unidos. A empresa americana enviou para a Derwick uma fatura de US$ 1,3 bilhão, mas a Derwick cobrava da PDVSA US$ 2,25 bilhões. A suspeita é de que a diferença de US$ 1 bilhão era distribuída como propina a atores centrais no esquema de produção de energia na Venezuela. Seus nomes, porém, ainda não estão sendo revelados.
Como o esquema envolvia uma companhia nos Estados Unidos, promotores federais do Distrito Sul de Nova York decidiram investigar. Em março de 2016, as autoridades americanas pediram ajuda da Suíça, que entregou ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos dados sobre 18 contas secretas da empresa, congelando US$ 100 milhões da PDVSA. Na Justiça americana, a Derwick foi indiciada pelos 12 contratos com estatais venezuelanas avaliados em US$ 767 milhões.
Entre os executivos da Derwick estão ainda dois venezuelanos: Orlando Alvarado e Francisco Convit Guruceaga. Eles seriam o elo da empresa com o Gazprombank Latin America Ventures, braço financeiro da estatal russa criado para operar na América Latina. Alvarado e Convit, porém, ocupavam cargos importantes nas duas empresas. Para criar o Gazprombank Latin America Ventures, os russos registraram a joint venture com a Derwick em Amsterdã. Segundo documentos da Câmara de Comércio da Holanda, Alvarado e Convit fazem parte da direção da nova empresa. Em 2012, o Gazprombank anunciou a criação da PetroZamora, na Venezuela. A empresa foi estabelecida com a PDVSA após empréstimo russo de US$ 1 bilhão. Mas, no momento da criação da nova operação de Moscou em Caracas, em nenhuma ocasião foi anunciado que, entre os intermediários, estava a Derwick.
Entre os documentos em mãos dos americanos, vários revelam como a Derwick concedeu “empréstimos” à joint venture – um deles de US$ 35 milhões destinados a uma conta na filial do Gazprombank, em Zurique. O que os investigadores tentam descobrir é o motivo pelo qual uma empresa teria feito um contrato para emprestar a um banco um volume importante de recursos. Suspeita-se que seja indício de um mecanismo usado para lavar dinheiro – já que o normal seria os bancos emprestarem – ou um canal para transferir recursos de forma ilícita.
A apuração ainda tenta determinar quem se beneficiou do dinheiro, se toda a transação ia de fato apenas para a produção de petróleo e qual era o objetivo de montar o esquema envolvendo diversos paraísos fiscais. Além de Barbados, Suíça e Holanda, também foram identificadas transações a partir do Panamá. O governo comuno-bolivariano chavista nunca escondeu a importância do elo entre Caracas e Moscou. Em agosto, o então presidente da PDVSA, Eulogio Del Pino, demonstrava a dimensão dos acordos. “A relação entre a PetroZamora com seu sócio estratégico russo Gazprombank é tão importante que, hoje, contam com mais de 2 mil km² em áreas de produção”, disse Del Pino.
A busca do regime venezuelano pelos aliados russos, segundo ele, teria um aspecto estratégico. “O comandante Hugo Chávez teve essa visão de fechar acordos com países como a Rússia, nação com a qual formamos oito empresas mistas em todo o país, que produzem mais de 250 mil barris de petróleo por dia, em uma aliança comercial e financeira perfeita”, disse Del Pino: “Por isso, o imperialismo americano nos ameaça e ataca". No mesmo período, Del Pino ordenou a todas as filiais da PDVSA barrar a Derwick de qualquer novo negócio com a petrolífera. Quatro meses depois, ele seria preso na Venezuela por suspeitas de corrupção.
O Gazprombank na Suíça afirmou inicialmente que não daria explicações por não ser responsável pelo acordo na Venezuela, insistindo que o caso teria de ser tratado por sua sede, em Moscou. Mas, quando foi confrontado por documentos que citavam nominalmente a filial em Zurique nos empréstimos, a assessoria indicou que avaliaria a situação. Quatro dias depois, os russos indicaram que qualquer comentário teria de vir da sede do banco, em Moscou. Mas seu assessor de imprensa em Zurique afirmou que nem tinha telefone ou e-mail de contato da matriz na Rússia. Em Moscou, o banco pediu que o correspondente do jornal O Estado de S. Paulo enviasse as perguntas por carta. Mas, dias depois, aceitou que a reportagem enviasse um e-mail para o Departamento de Relações Públicas. Uma semana depois do pedido de esclarecimento, o banco não havia enviado resposta. E é bobagem esperar, porque russos nunca dão explicação alguma. Tanto nos Estados Unidos como na Suíça, o banco é alvo de sanções. Em Berna, o Gazprombank foi condenado, em fevereiro, pela Agência Reguladora do Sistema Financeiro (Finma) por “sérias falhas em processos anti-lavagem de dinheiro”. A entidade estimou que o banco russo não estaria agindo de forma adequada para evitar ações criminosas e passou a proibir a filial do banco, em Zurique, de abrir novas contas.
A iniciativa de punir o Gazprombank foi tomada depois que os suíços passaram a investigar 30 bancos relacionados com as revelações dos Panama Papers. Apenas os russos foram punidos. Entre as violações por parte do banco, estavam falhas na autenticação de documentos apresentados por clientes para justificar a origem de recursos. O banco tampouco informou às autoridades suíças casos suspeitos de corrupção envolvendo suas contas.
Em comunicado, o Gazprombank Switzerland apenas indicou que “aceitava a decisão da Finma”, mas indicou que as falhas eram do período em que o banco era conhecido como Russian Commercial Bank, antes de 2009. Segundo os suíços, porém, as falhas se referem ao período entre 2006 e 2016. A Derwick também não deu explicação. O Tesouro americano incluiu a joint venture Gazprombank Latin America em sua lista de sanções. Além disso, no início de abril, por conta do escândalo de envolvimento russo nas eleições americanas, o CEO do banco, Andrey Akimov, passou a ser alvo das sanções do governo americano por conta de sua proximidade a Vladimir Putin.
Um dos últimos aliados do governo de Nicolás Maduro entre as grandes economias do mundo, os russos firmaram vários acordos comerciais com a Venezuela desde 2013. Liderado pelo vice-primeiro-ministro Igor Sechin, um dos chefes da estatal de petróleo Rosneft, o Kremlin passou a usar a criação de joint ventures para atuar na exploração de energia em território venezuelano. Em troca, a Rússia impede a aprovação de resoluções condenando o regime venezuelano no Conselho de Segurança da ONU. Em 15 de maio de 2001, o presidente russo, Vladimir Putin, recebia pela primeira vez seu colega venezuelano, Hugo Chávez. Durante o encontro, os dois firmaram acordos de cooperação militar e combate ao narcotráfico. Desde o início, o chavismo buscou em Moscou um contraponto aos Estados Unidos. Tanto que Chávez anunciou uma “aliança estratégica” contra o domínio mundial dos americanos. Mais tarde, quando a crise começou a se agravar, a Venezuela buscou ajuda dos russos para pagar dívidas e financiar o governo com empréstimos.
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