Os julgamentos padecem de um erro fatal: não individualizam as condutas; condenam de baciada. Até a absolvição de todos os policiais é possível; jurisprudência do STF é pacífica a respeito
Por Reinaldo Azevedo - O fascismo, de esquerda ou de direita, não enxerga nuances. E ataca aqueles que insistem em ver um mundo um pouco mais complexo do que aquele que sugere sua estupidez militante. Vamos lá. A 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo anulou um conjunto de aberrações jurídicas: os julgamentos dos 74 policiais militares condenados por aquilo que a imprensa chama, sem pudor, de “massacre do Carandiru”. Que assim se fizesse em textos opinativos ou analíticos, vá lá. Mas se dá de barato que massacre foi. Isso, no entanto, é o de menos. Qualquer alma que se atreva a dizer que a decisão está correta — E ESTÁ, SEM ENTRAR NO MÉRITO DO QUE ACONTECEU NAQUELE DIA — logo será tratada como uma defensora não só daquele massacre, como de massacres no geral. E, claro!, esses seres pios se sentem confortáveis no seu papel porque, afinal, eles se consideram defensores dos “direitos humanos”. Logo, os que não concordam com eles não passam de facínoras, que apoiam o morticínio. Se há ou não motivos técnicos para anular o julgamento — e há! —, pouco importa. Como, aliás, dizem algumas entidades descontentes com a decisão, a anulação estimularia a ocorrência de novos… massacres. Nem esses anjos de piedade escondem que estão pouco se lixando para o que os ex-condenados fizeram ou deixaram de fazer. O que importa é usar os 74 policiais como exemplos. O que importa, em suma, é massacrá-los nos tribunais com penas que vão de 48 a 624 anos… Então vamos ver. A defesa dos réus havia recorrido ao TJ cobrando a anulação dos julgamentos, feitos por tribunais do júri. O relator do caso, desembargador Ivan Sartori, fez mais do que votar em favor da tese: ele também pediu a absolvição dos condenados, uma decisão que é polêmica porque se entende que o tribunal pode, sim, anular o julgamento e marcar um outro, mas não reformar uma decisão de um tribunal de júri. Seus dois colegas, Camilo Léllis e Edison Brandão, também votaram pela anulação — logo, em favor de novos julgamentos —, mas não aderiram à tese da absolvição. A retórica de Sartori certamente ajudará a inflamar as tais entidades de direitos humanos. Afirmou ele: “Não houve massacre. Houve obediência hierárquica. Houve legítima defesa. Houve estrito cumprimento do dever legal. Agora, não nego que, dentre eles, possa ter existido algum assassino. Nós, julgadores, não podemos nos influenciar por imprensa ou por quem se diz dos direitos humanos. A minha consciência está aqui. Sou o julgador. Quem manda na minha consciência sou eu mesmo”. Há aí, como se vê, um juízo de mérito, que, parece-me, deve ser exercitado num outro julgamento, se houver — embora eu também entenda que afirmar que alguém praticou um “massacre” supõe atribuir-lhe a intencionalidade de… massacrar. Quem, avaliando as condições em que atuaram aqueles policiais, naquele inferno, se atreveria a dizer isso, a não ser que esteja apenas atendendo ao clamor de grupos de pressão? A argumentação de Camilo Léllis vai ao centro da questão. Não houve a individualização das condutas. Acreditem: não se disse quem fez o quê. Afirmou o desembargador: “Houve uma situação de confronto, e acredito que aconteceram excessos, mas é preciso verificar quem se excedeu, quem atirou em quem. A perícia foi inconclusiva e duvidosa. O juiz é a última esperança de um acusado e não se pode condenar por ‘baciada’”. Atenção! Os que estão gritando suas exclamações por aí nem se deram ao trabalho de saber o que diz a lei. Vá perguntar a Bernardo Mello Franco, da Folha, o mais estridente nesta quarta-feira, se ele ao menos se deu o trabalho de saber o que diz o Artigo 41 do Código de Processo Penal. Ora, é claro que não! Ele é bom! E os que não pensam como ele gostam de massacres. E lá está escrito:
“Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”
Não se pode acusar de baciada! Ou como escreveu o ministro Gilmar Mendes: “Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito. Violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo. Necessidade de rigor e prudência daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso”. Os policiais foram condenados porque admitiram que atiraram. Ora, se admitiram e se se aquilo foi um “massacre”, por que não uns 600 anos de cadeia, ainda que as provas sejam inconclusivas? Sabem o que é impressionante? A procuradora Sandra Jardim — a parte, digamos, derrotada da decisão — lamenta o voto de Sartori, mas reconhece que os votos de Léllis e Brandão são técnicos. Mas não a imprensa! Alguns jornalistas estão ocupados demais pontuando as frases com exclamação e ouvindo as tais “entidades”. Já que houve um massacre no Carandiru, é preciso agora massacrar os policiais com penas absurdas. Só para dar o exemplo. Eis o humanismo da esquerda. Para encerrar: o tribunal vai voltar ao caso, já que a votação não foi unânime. Dois outros desembargadores, ausentes nessa decisão, também vão votar. Quando menos, o julgamento está anulado. É possível haver a absolvição. Vai dar um bom barulho, mas é. A jurisprudência do Supremo é pacífica a respeito. A Alínea C do Inciso XXXVIII do Artigo 5º da Constituição reconhece a soberania do júri. Mas já decidiu o STF no Habeas Corpus 68.658: “A soberania dos veredictos do Júri — não obstante a sua extração constitucional — ostenta valor meramente relativo, pois as manifestações decisórias emanadas do Conselho de Sentença não se revestem de intangibilidade jurídico-processual. A competência do Tribunal do Júri, embora definida no texto da Lei Fundamental da República, não confere a esse órgão especial da Justiça comum o exercício de um poder incontrastável e ilimitado. As decisões que dele emanam expõem-se, em consequência, ao controle recursal do próprio Poder Judiciário, a cujos Tribunais compete pronunciar-se sobre a regularidade dos veredictos. A apelabilidade das decisões emanadas do Júri, nas hipóteses de conflito evidente com a prova dos autos, não ofende o postulado constitucional, que assegura a soberania dos veredictos desse Tribunal Popular”. Vale dizer: o TJ pode, sim, mudar uma decisão do tribunal do júri. A questão é saber com que argumento. O debate é bom! A gritaria burra é péssima! Ah, sim: a vida não é o filme, e os policiais não são os vilões de “Carandiru”, de Hector Babenco. Aquilo é ficção.
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