Luiz Inácio Lula da Silva não sabe viver sem a personagem “Lula”; ele chora porque, em parte ao menos, acredita na própria farsa
Por Reinaldo Azevedo - Lula chorou três vezes nesta quinta ao fazer um discurso puramente político para responder às acusações da Operação Lava Jato. O discurso, todos pudemos reparar, não muda. Quando, na Presidência da República, estava no auge da popularidade, ele exaltava os próprios feitos e sustentava que nunca antes um governante havia feito tanto em benefício do povo. Agora, mesmo estando numa pior, a ladainha é a mesma. A quem aquela fala convence? Quando Sergio Moro determinou a sua condução coercitiva para depor, em março, ele evocou a figura da jararaca. E desafiou: se querem matá-la, que lhe esmaguem a cabeça, não o rabo. Era o discurso da fera ferida. Fez uma ameaça e tomou providências para concretizá-la: decidiu dar o seu impeachment pessoal a Dilma e retomar o governo. Ela foi obrigada — o termo é esse — a nomeá-lo chefe da Casa Civil. Não chegou a tomar posse porque obstado pelo Supremo. Nas conversas telefônicas que vieram a público, revelou a sua intenção de pôr o Ministério Público Federal no seu devido lugar. E anunciou: só ele poderia fazê-lo. Nesta quinta, o tom da indignação e a tese de fundo eram os mesmos: forças terríveis se conjuraram para tirar do poder o partido que faz bem ao povo e para impedir a sua candidatura em 2018. Mas a jararaca deve ter entendido que, de fato, há o risco de uma pedra esmagar-lhe a cabeça. E Lula então chorou. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Era um choro sincero? Tão sincero quanto sincero é o choro de um ator que se deixa realmente ser incorporado pela personagem. Há teorias da representação. Uma delas é a do russo Stanislavski (1863-1938). Faço uma síntese sumaríssima para o que nos interessa aqui. O ator tem de viver intensamente seu personagem, de conhecê-lo, de mergulhar na sua psicologia. Deve, sem nunca abandonar a técnica, recorrer à sua memória emotiva e afetiva a colocá-la a serviço do papel. Tem, em suma, de se deixar possuir e, enquanto viver a vida de um outro, de estar convencido de que é esse outro. É por isso que já escrevi algumas vezes que o ator Lula realmente acredita ser a personagem Lula. Ou ainda pior: Lula, o ator, não consegue viver sem representar a personagem. E isso não deixa de ser uma forma de tortura, acho eu. No chororô desta quinta, ele, mais uma vez, evocou Fernando Henrique Cardoso, que respondeu de modo ironicamente generoso, dizendo que reconhecia a sua necessidade de desabafar. Mais uma vez, o petista sugeriu que é melhor e mais bem-sucedido como presidente do que seu antecessor. Ele sabe ser isso falso de várias maneiras. Mas a lembrança do adversário era também a referência a um antípoda. FHC deixou com facilidade e rapidez a faixa presidencial. Transformou-se, num estalar de dedos, num ex-presidente, voltou a cuidar de seus livros — sim, fazendo política, mas de modo suave —, exibindo um ar tranquilo e quase sempre brincalhão — não é do humor rasgado, mas se nota que empresta a tudo o grão de sal de ironia. Ou por outra: o homem FHC tinha noção de que o presidente FHC era uma personagem, mas que ele assumia com o devido distanciamento. Fora da Presidência, havia a vida intelectual, seus interesses acadêmicos, um vasto círculo de amizades constituído de pessoas que estão fora da política e das disputas pelo poder. Fernando Henrique Cardoso podia viver sem FHC. Luiz Inácio da Silva só sabe ter uma existência sendo Lula. E isso se revelou nesta quinta mais uma vez. Depois de a jararaca chorar, evidenciando que jararaca não é — ou, então, é uma jararaca com medo —, Lula voltou a falar de si mesmo na forma, como direi, partenogênica. Não é a primeira vez: em 2010, ele avisou os eleitores: quando virem na cédula eletrônica o nome “Dilma”, é para ler “Lula”. Ontem, ele disse que os estudantes que ocupam escolas, que os militantes que vão às ruas contra Temer, que a turma dos sindicatos, bem, todas essas pessoas são replicantes de… Lula! Há algo de espantoso e, se eu fosse apelar à simbologia religiosa, demoníaco neste senhor. Na sua cabeça, ele inventou o Brasil, reescreveu o seu passado, mudou o seu presente e determinou o seu futuro. Temendo, e ele teme, ir para a cadeia, ainda assim, anuncia a sua imortalidade e a sua multiplicação. Em termos puramente maquiavélicos, Lula tem a “virtù”, o talento natural, de um fascista. Sejamos gratos aos céus que não tenha sido, nesse particular, beneficiado pela “fortuna”, pelas circunstâncias. Ou ele poderia ser o protagonista de uma imensa tragédia.
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