segunda-feira, 6 de junho de 2016

Corpo de Muhammad Ali é velado em Louisville, sua cidade natal




O corpo de Muhammad Ali chegou a Louisville, Kentucky, na tarde deste domingo. O principal lutador da história do boxe será enterrado na cidade onde nasceu, em cerimônia que será realizada sexta-feira e contará com a presença de políticos e personalidades do esporte. O porta-voz da família, Bob Gunnel, informou que vários familiares, como a esposa Lonnie, e diversos amigos estiveram presentes no vôo que transportou o corpo do lutador. O corpo foi levado para um local privado, onde a família iniciou uma cerimônia. Neste domingo, a cidade natal de Ali recebeu muitas homenagens. Na igreja de seu pai, a família rezou e houve diversos tributos ao multicampeão mundial dos pesos pesados. O pai de Ali foi pintor e era membro da igreja do Rei Salomão. Morreu há uma década, mas pintou um mural do batismo de Jesus que continua até hoje nas paredes da igreja. A cidade também abriga um memorial do lutador, onde fãs de diversas regiões dos Estados unidos foram prestar homenagens. Na porta do local, deixaram luvas de boxe, flores, imagens do lutador e inúmeras cartas. Muhammad Ali morreu na madrugada de sexta-feira para sábado em decorrência de um choque séptico. O lutador sofria há 32 anos de Parkinson e estava internado em estado grave em um hospital de Phoenix, no Arizona, onde deu entrada com problemas respiratórios. Fora dos ringues, ele também ficou conhecido como defensor da igualdade racial e se recusou a combater na Guerra do Vietnã após alegar que não via motivos para lutar contra os vietcongues porque "nenhum deles me chamou de crioulo". 


Em 1978, quando a carreira de Muhammad Ali (56 vitórias, apenas cinco derrotas e nenhum empate) se aproximava do fim, o romancista e poeta Ishmael Reed escreveu Reed: "Ali nos seguirá lembrando a turbulenta década de Malcolm X, da Nação do Islã, do Vietnã, de Lyndon Johnson, do Black Power, de Robert Kennedy e de um longo etecetera. Ali representa os novos negros dos anos 70, descendentes dos novos negros dos anos 20: é elegante, sofisticado, inteligente, internacional e militante da causa negra". No ringue, nunca houve um lutador como ele, capaz de "flutuar como uma borboleta e picar como uma abelha", em sua própria definição. Muhammad Ali sempre soube do significado de sua fama e da carga social que o boxe americano, de pobres e negros, carregava. O jornalista David Remnick, editor da revista New Yorker, lembra uma frase de Ali que agitou corações e mentes entre o final dos anos 60 e o início dos 70, ao resumir sua atividade: "Somos dois escravos em um ringue. Os senhores põem dois de seus velhos escravos negros para lutar enquanto eles apostam, 'meu escravo vai machucar o seu'". Aliás, lembra Remnick, o primeiro campeão americano de boxe foi um escravo, Tom Molineaux, de propriedade de fazendeiros da Virgínia. Esperto, fanfarrão, falsamente mercurial, até que o Mal de Parkinson o calasse, Ali tinha um discurso moldado para construir um personagem, afeito ao que sonhavam os fãs de todo o mundo. Ele encarnou um personagem midiático. Abandonou a fé cristã porque a considerava "religião dos homens brancos"; rasgou o nome de batismo Cassius Marcellus Clay, porque, dizia, era "meu nome de escravo"; rejeitou combater no Vietnã e trocou a luta pelos direitos civis em defesa do islamismo violento dos adeptos da Nação do Islã. Não tardou para que se transformasse no mais querido personagem de uma intelectualidade que misturava máquinas de escrever com luvas de boxe, às vezes trocando uma por outra. Ali foi uma figura necessária - ajudou a moldar seu tempo e por ele foi moldado. Mas nada como o passar dos anos para pôr as verdades no lugar, como o pugilista atordoado que depois do intervalo, ao soar do gongo, sabe que deve retornar à lona verde com mais cautela. Fora dos ginásios, onde realmente fazia do agressivo boxe uma nobre arte, era uma metralhadora verbal que girava a esmo. Naqueles tempos românticos e turbulentos, faça amor, não faça a guerra, soava engraçado e inteligente. A graça, vista hoje, parece um tanto deslocada, dada as transformações pelas quais a sociedade passou. Sua inteligência, rápida como um jab, ainda é respeitada - mas talvez já não fizesse tanto sentido, alimentada por lugares-comuns que funcionavam espetacularmente bem no final dos anos 60 e início dos anos 70, mas não mais. Ao acender a pira olímpica da Olimpíada de Atlanta, em 1996, mãos trêmulas, olhar perdido, o campeão foi unanimemente celebrado, como um animal ferido que antes da doença só fizera o bem, apesar de ganhar a vida com luvas. A emocionante cena da abertura dos Jogos Olímpicos apagou da memória os movimentos tortos e contraditórios de Ali, tão tortos e contraditórios como o século XX que ele ajudou a desenhar, na inegável figura de uma de suas mais influentes personalidades. ​Líder das causas civis dos negros americanos, ele também alimentava o racismo. Em entrevista à revista Playboy chegou a sugerir que um homem negro deveria ser assassinado caso casasse com uma mulher branca. Trocou a amizade com Malcolm X pelo radicalismo de Elijah Muhammad. Ao vencer George Foreman, em 1974, no épico combate do Zaire, disse que "os Estados Unidos não têm futuro, Alá enviará um castigo divino aos Estados Unidos". Depois, como costuma acontecer após muito histrionismo, arrependeu-se de tudo, e chegou a lamentar a idolatria cega que o cercava. Sem a retórica que o sustentava, sem os punhos que batia com jabs elegantes, Ali teve a grandeza de se reinventar e de admitir que não fora perfeito - ainda que, aos olhos do mundo, sua grandeza ainda seja aquela do tempo em que os Estados Unidos perderam a guerra do Vietnã dentro de casa, quando qualquer grito mais ou menos coerente agitava multidões e encurralava os poderosos. Tivesse ele a postura dos anos 60 e início dos 70, não teria sido convidado por Barack Obama a ocupar a fileira da frente na cerimônia de posse do presidente negro, em 2009. 

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