A Comissão Nacional da Verdade ignorou em seu relatório final uma série de documentos inéditos encontrados durante a investigação que podem alterar o entendimento de episódios da ditadura (1964-85) que já foram reconhecidos pelo Estado. Trata-se de um conjunto de relatórios dos órgãos de inteligência das Forças Armadas que, entre outros assuntos, detalha ações de monitoramento contra militantes e as atividades dos infiltrados nas organizações de esquerda. Os infiltrados, ou "cachorros", assim eram chamados os militantes de fachada que, na realidade, colaboravam com a repressão. São informes, transcrições de encontros e até recibos de pagamento que os militares faziam para registrar a coleta de informações. A prática foi crucial para a repressão dizimar as organizações de esquerda na década de 1970. Não há uma linha sobre os infiltrados nas conclusões da Comissão da Verdade –os documentos nem sequer foram mencionados. "Fiquei estarrecida quando vi que eles não estavam no relatório", admitiu a psicanalista ultrapetista Maria Rita Kehl, que fez parte do grupo. A esquerda sempre esconde os fatos desabonadores de esquerdistas. Ela e o último coordenador, Pedro Dallari, não souberam explicar a razão de os papéis terem sido descartados. "Foi usada toda a documentação que estava disponível. Se não usamos mais foi por falta de tempo", afirmou Dallari. É evidente que não é verdade. A análise desses documentos pode mudar o entendimento de casos já reconhecidos e indenizados pelo Estado, caso do militante Caiupy Alves de Castro. Integrante da FLN (Frente de Libertação Nacional), ele desapareceu em novembro de 1973. Seu corpo nunca fora encontrado. Caiupy foi reconhecido como desaparecido político pelo governo FHC (1995-2002) e sua família foi indenizada. Ficha do Cenimar (Centro de Informações da Marinha) com o registro dos infiltrados mostra que, ao ser preso, em junho de 73, Caiupy aceitara trabalhar como informante. A legislação veda indenização a pessoas que, ainda que vítimas, tenham sido também colaboradoras da repressão. Foi nessa linha a decisão do governo federal ao negar pedido de José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, notório agente duplo da ditadura. Os documentos desprezados foram encontrados entre 2012 e 2013 por um grupo de historiadores e jornalistas que auxiliou a comissão, sob a coordenação da historiadora Heloísa Starling. Conhecido internamente como "equipe ninja", ele foi encerrado após o primeiro ano de trabalho. Três historiadores – José Murilo de Carvalho, Ângela Castro Gomes e Daniel Aarão Reis – analisaram os papéis para a comissão e reconheceram em parecer que eles eram autênticos e inéditos. "Os documentos eram realmente inéditos e importantes. Não há nada parecido, nem no Arquivo Nacional nem em lugar nenhum. Lamentável, e inexplicável, a comissão não os ter considerado", reafirmou Daniel Aarão Reis: "As explicações continuam sendo devidas à sociedade brasileira".
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