sábado, 1 de novembro de 2014

USINAS DO SUDESTE TÊM MENOR NÍVEL EM 20 ANOS E CRESCE RISCO DE RACIONAMENTO

Os reservatórios das hidrelétricas da região Sudeste iniciam novembro nos níveis mais baixos em 20 anos, segundo levantamento da consultoria Thymos, especializada em energia elétrica. O cálculo leva em consideração principalmente o desempenho das usinas instaladas nas bacias dos rios Paranaíba e Grande, que, juntas, respondem por quase 65% da geração de energia do País.O cenário é considerado “crítico”. As barragens das usinas estão com volume de água menor que o registrado em 2000, às véspera do racionamento - segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o nível hoje está em 18,8% e a previsão é chegar ao final de novembro com 15,5%.

Pesa também nesse quadro o fato de as térmicas, que suprem a falta das hidrelétricas, estarem operando quase ininterruptamente há dois anos, apesar de não terem sido projetadas para funcionarem por períodos tão prolongados. Segundo João Carlos Mello, presidente da Thymos, a prolongada falta de chuvas na região eleva o risco de racionamento no ano que vem. “Hoje, o risco de racionamento é da ordem de 25%”, diz. “Se as chuvas do próximo verão forem parecidas com as do verão passado, o risco será ainda maior: sobe para 40% entre abril e maio de 2015". O ONS, que é responsável pela gestão das usinas, tem priorizado o uso de qualquer reserva para gerar energia, sacrificando até outros usos da água, como a irrigação e o transporte fluvial. Um indicativo dessa tendência é a operação do Complexo de Ilha Solteira e Três Irmãos, no rio Paraná. Desde meados do ano, o complexo opera abaixo do chamado volume útil. Numa comparação com o sistema de abastecimento de água, o complexo está usando o volume morto da represa para gerar energia. De acordo com o ONS, é uma estratégia normal, que já foi usada em outros momentos. Segundo a Companhia Energética de São Paulo, que tem a concessão da usina, o nível da represa de Ilha Solteira está em torno de 3,18 metros abaixo do nível mínimo útil operacional, o que corresponde a -53,60% do volume útil - assim mesmo, com sinal negativo. Para Mello, a tendência é que essa receita seja repetida em outras usinas. Para mostrar de perto os impactos da seca sobre as usinas, a série Caminhos da Seca desta semana foi até a Bacia do Rio Grande, que abrange uma área de 143 mil km² entre Minas e São Paulo. Além da importância na geração elétrica, seus afluentes também irrigam importantes áreas do agronegócio, como a de cana-de-açúcar, que tem sido castigada pela falta de água. Para mostrar o movimento em seu restaurante, às margens do lago de Furnas, em Minas Gerais, Antônio Carlos da Costa, o Morcegão, exibe uma foto ampliada, pendurada na parede ao lado do caixa. Na imagem - uma vista aérea do local feita em 2011 -, há várias lanchas e barcos, de diferentes tamanhos, ancorados rente ao parapeito do restaurante, disputando espaço nos dois píeres flutuantes do estabelecimento. A água é farte e alta. “Este é o meu movimento”, diz batendo com um remo no quadro. “Caiu 70%, o que me salva é essa obra aí na frente"” Na sua porta, começa o bloqueio de carros para a pista única no trecho da MG-50, que está sendo duplicada. Nos fundos, o lago de Furnas recuou tanto que Morcegão já retirou um dos píeres da foto. Nas margens há terra, pedras, lama. Se em 15 dias não chover, ele vai tirar o outro. “Custa mais de R$ 50 mil e não vou deixar estragar.”



Ele e a mulher, Márcia Maria Motta, estão nessa mesma margem desde 1988. “Me lembro de ter visto o lago assim apenas duas vezes”, diz Morcegão. “A primeira, eu nem lembro o ano porque faz tempo, mas a última vez foi entre 2000 e 2001, antes do racionamento.” Esse cenário que atrapalha o lazer é, acima de tudo, um grande sinal de alerta para o abastecimento energético do País. Se para os turistas a represa de Furnas é o mar de Minas Gerais, para os especialistas do setor elétrico ela faz parte de uma sequência de usinas que constituem a caixa d’água do Brasil. Furnas é uma barragem emblemática. Foi a primeira grande obra de engenharia do setor elétrico brasileiro e deu nome à estatal responsável por construí-la. Ela é a primeira grande hidrelétrica que represa as águas da Bacia do Rio Grande, um dos mais importantes eixos hídricos do Brasil. O Rio Grande nasce na Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais, corre para o interior fazendo uma divisa natural entre Minas Gerais e São Paulo. Ao se encontrar com o Rio Paranaíba, passa a se chamar Rio Paraná. Com várias corredeiras e trechos inclinados, a bacia tem 71 hidrelétricas, 16 delas grandes usinas. O complexo é um dos pilares do abastecimento do Brasil: responde sozinho por quase 9% de toda a geração de energia elétrica do País. Praticamente todas as usinas ali instaladas já sentem a estiagem. A pequena hidrelétrica de Camargos, operada no município de Itutinga, em Minas Gerais, já vinha reduzindo a produção desde o início do ano e a previsão é que seja desligada nesta semana. Em Furnas, a régua de medição que fica pouco antes da casa de força dá conta que a represa caiu 14 metros. Hoje, a usina tem 13,5% do volume normal de água para gerar energia. Por causa da estiagem, as margens do lago de Furnas recuaram de 70 a 80 metros, em alguns trechos até 100 metros. A baixa da água produz nas margens cenas que não ficam bonitas em nenhum cartão-postal. Em vários pontos, emergem bancos de areia, paredões de pedras áridos, árvores mortas antes submersas. Há caminhões-pipa recolhendo a água para encher piscinas de hotéis e de condomínios fechados. Nas casas mais elegantes, lanchas e iates foram recolhidos e o que se vê são píeres aterrados em áreas já totalmente secas. “E não tenha dúvida de que vai secar mais ainda”, diz Donizette Antônio da Silva, 50 anos, construtor que ergueu várias casas de alto padrão no entorno do lago. “Trabalho há 30 anos nessas beiradas e poucas vezes vi a água baixando tão depressa: esse canal que estamos vendo aqui vai secar totalmente em 30 dias”, diz, apontando um braço do lago que está à míngua. Apesar de o lago estar secando, Furnas libera enorme quantidade de água para garantir a operação das usinas rio abaixo. Mas todas elas - Peixoto, Estreito, Jaguara, Igarapava, Marimbondo e Água Vermelha - também perdem volume. Marimbondo, por exemplo, está a quatro metros de atingir o nível zero. Na avaliação de João Carlos Mello, presidente da Thymos, consultoria especializada em energia elétrica, a situação exige cautela. “Nas atuais condições - e não há indicação que ela vai se alterar - podemos dizer que estamos à beira de um colapso”, diz Mello. “Talvez fosse a hora de refletir e incentivar o uso mais racional da energia". Caso contrário, o que restará é a opção apresentada por Márcia, mulher de Morcegão, que vê o lago de Furnas cair: “Nos resta deitar os joelhos e pedir por ele”. Não são apenas as hidrelétricas do Rio Grande que sofrem com a estiagem. Sobre toda a área da bacia - que tem cerca de 143 mil km², a maior parte em São Paulo - há uma imensa bolha de calor castigando o agronegócio. Há muita terra limpa à espera da chuva para plantio de grãos. Pés de café e de laranja amarelam sob o sol. Os brotos da cana-de-açúcar da safra de 2015 não estão se desenvolvendo. Os pés têm metade, às vezes um terço, do tamanho adequado. Nesse ambiente de secura, uma praga em particular prospera: o fogo. “Os incêndios surgem na beira das rodovias e vão consumindo tudo que há pela frente: cafezais, plantações de eucaliptos, canaviais, canteiros de rodovias, áreas de reserva”, diz Manoel Ortolan, presidente da Canaoeste, associação que reúne 2,3 mil produtores de cana de 70 municípios paulistas. “Ainda não contabilizamos os prejuízos do fogo, mas ficou claro com a seca que temos de nos preparar melhor contra ele.” Por ironia, a cultura mais afetada pelos incêndios foi a cana - que por décadas usou o fogo para a colheita. Era assim porque o fogo consome as folhas, mas não a fruta, que permanece para ser moída na usina. Como as queimadas desgastam o solo, poluem e afetam as pessoas e o meio ambiente, foram proibidas. Adotou-se a colheita mecanizada. Nesse processo, as folhas são separadas da cana e jogadas no solo, onde ressecam e se transformam num tapete bege que protege e aduba o solo. É nessa palha que o fogo se alastra, matando os brotos da cana que estão embaixo. Setembro e outubro foram meses dramáticos. “Em toda a região, era fogo todo dia”, diz Dorival Altino, 50 anos, fiscal de queima e proteção da Usina Batatais, no município de mesmo nome. “Domingo passado choveu um pouquinho e o fogo sossegou, mas já secou tudo e ele voltou.” Quinta-feira, sua equipe gastou duas horas para controlar um incêndio numa área pública ao lado do canavial da usina que está brotando. O fogo chegou a mudar a rotina dos produtores. A família Bazzo, tradicional em Terra Roxa, perdeu num único incêndio 100 hectares de cana que começava a brotar para a safra do ano que vem (algo como 100 estádios do Maracanã). “Foi-se 25% da minha produção”, diz Clemente Bazzo. “A gente só viu a fumaça subindo e já não tinha o que fazer. Vieram caminhões-tanque das usinas, mas nada segurou o fogo, que parou no muro de casa.” Os Bazzo são conhecidos por viver para o trabalho. Os gêmeos Clemente e Camilo, 63 anos, nem sequer conhecem o mar. Mas estão parados à espera da chuva. “Não vamos plantar soja nem decidir o que fazer com a cana enquanto não chover”, diz Clemente. Os irmãos Carlos Roberto Lovato Júnior, 36 anos, e Carlos Américo Sicchieri, 38 anos, têm convicção de que a chuva virá nesta semana. Na quarta-feira, Júnior caminhava ansioso na propriedade da família, junto à rodovia em Viradouro. Monitorava a preparação da terra. Sicchieri pilotava o trator vermelho. “Já trouxemos o trator aqui um monte de vezes, mas na terra seca ele não roda”, disse Júnior. Domingo passado choveu ali 50 mm, “um nada”, na definição dele. “Mas o suficiente para a gente ao menos preparar a terra e esperar a chuva que, dizem, agora vai começar.” Alexa Salomão - Estadão

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