Coitado do Caetano Veloso! Ele é capaz de compreender o alcance até estético da truculência fascista e anônima dos black blocs, mas é contra a publicação de biografias que não sejam autorizadas pelos biografados ou seus descendentes. Não só. Acha que, quando autorizada, o biografado tem de ser remunerado. Agressão à liberdade de expressão? Nãããooo!!! Se o texto for publicado graciosamente na Internet, aí tudo bem! Caetano, então, só não reconhece o direito autoral do biógrafo, do pesquisador, do escritor, do jornalista… E faz essa defesa, para escândalo da lógica, no bojo de uma lei que defende o… direito autoral!
É bem verdade que nem ele nem os demais artistas que estão com ele nessa patuscada se pronunciaram. A porta-voz dessa nova frente de censores é Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano e chefona do tal movimento “Procure Saber”. A lista de apoiadores da patranha é grande — há gente lá de que nem eu nem ninguém nunca ouvimos falar. Nem precisavam ser tão ciosas de sua intimidade, que já está naturalmente resguardada pela irrelevância. Mas há também cabeças coroadas da MPB: Chico Buarque (não há causa autoritária que este senhor não endosse, e faz tempo!), Milton Nascimento, Roberto Carlos (o que censura até livro sobre a Jovem Guarda), Djavan. Digam-me: alguém, alguma vez, se interessou em conhecer detalhes da vida de Djavan? Nem quando ele cantou“Mais fácil aprender japonês em braille/ do que você decidir se dá ou não”, eu me interessei em quebrar a metáfora para tentar entender o que ele quis dizer…
É o fim da picada! A Constituição brasileira, que acaba de fazer 25 anos, assegura a ampla liberdade de expressão em dois artigos: o 5º e o 220. Mas o Artigo 20 do Código Civil exige a autorização prévia para a publicação de biografias. Com base nele, juízes têm determinado o recolhimento de livros, o que é coisa própria de ditaduras, não de democracias. Os tais artistas, que se reuniram para mudar a lei dos direitos autorais (nem vou entrar no mérito neste texto), passaram a defender, de quebra, a manutenção da restrição — a palavra final acabará sendo do Supremo.
“Ah, então você defende que qualquer um possa escrever qualquer coisa sobre qualquer pessoa, sem restrições?” É evidente que não! Existem leis para coibir e para punir a injúria, a calúnia e a difamação. E elas não valem apenas para o que é divulgado na imprensa. Alcançam também os livros. Se um biógrafo incorrer numa dessas faltas, que arque com o peso do Código Penal — além de eventuais ações indenizatórias na área cível. Por que diabos precisamos de uma lei que, na prática, permite até mesmo a censura prévia?
A culpa deles, as nossas culpas
Pois é… Há muito tempo eu enrosco com os nossos “cantores” e, de maneira geral, os nossos “artistas” e “celebridades” que opinam sobre tudo e qualquer coisa. O mais eloquente deles é mesmo Caetano Veloso. Não há assunto no plano material ou espiritual sobre o qual ele não tenha uma opinião, que costuma ser acatada pela imprensa como o “magister dixit”. O mesmo se diga sobre áreas do conhecimento: estética, ciências, filosofia, religião… Se Caetano falou, falado está. Só ele? Não! Na campanha eleitoral de 2010, Chico Buarque, por exemplo, deu uma abalizadíssima opinião sobre política externa — segundo ele, o governo tucano falava grosso com a Bolívia e fino com os EUA. Hoje que falamos grosso com os EUA e fino com a protoditadura boliviana, ele deve estar feliz.
Pois é… Há muito tempo eu enrosco com os nossos “cantores” e, de maneira geral, os nossos “artistas” e “celebridades” que opinam sobre tudo e qualquer coisa. O mais eloquente deles é mesmo Caetano Veloso. Não há assunto no plano material ou espiritual sobre o qual ele não tenha uma opinião, que costuma ser acatada pela imprensa como o “magister dixit”. O mesmo se diga sobre áreas do conhecimento: estética, ciências, filosofia, religião… Se Caetano falou, falado está. Só ele? Não! Na campanha eleitoral de 2010, Chico Buarque, por exemplo, deu uma abalizadíssima opinião sobre política externa — segundo ele, o governo tucano falava grosso com a Bolívia e fino com os EUA. Hoje que falamos grosso com os EUA e fino com a protoditadura boliviana, ele deve estar feliz.
A ditadura militar ainda nos faz muito mal, sim. Mas de um modo muito mais amplo do que supõem alguns. Além dos problemas que lhe eram intrínsecos — e eu os conheço de perto porque tomei muita borrachada —, há um outro, que perdura na cultura brasileira. Pouco importava a bobagem que dissesse, ou que ainda diga, o idiota de plantão, logo ele era, e é, alçado ao panteão dos pensadores se, afinal, estivesse, ou esteja, se manifestando contra “a ditadura”. Assim, opor-se ao regime militar se tornou uma espécie de selo de qualidade do pensamento.
E o mecanismo se renova. Como a ditadura já vai ficando distante de nós, novas “causas” vão juntando novos idiotas, que pontificam com a autoridade dos sábios sobre os mais variados assuntos. A profundidade da ignorância que exibem chega a ser comovente. Ou não vimos, não faz tempo, um grupo de artistas globais a proclamar a maior quantidade de besteiras jamais reunidas num só vídeo sobre a usina de Belo Monte? Nada escapou: história, física, geografia, matemática… Tudo falecia diante da ignorância propositiva, convicta, sincera!
Não me desviei do assunto. Vocês verão que não! Por que estamos, de algum modo, surpresos com a defesa que aqueles artistas fazem da censura? Porque, no Brasil (não é só aqui, mas, por aqui, é mais!), artista logo ganha o estatuto de pensador. Mais do que isso: sua glossolalia ideológica — e eles não têm a obrigação de ser especialistas na área — logo é tomada como uma expressão de uma política alternativa. Querem um exemplo? Caetano Veloso, Chico Buarque e Wagner Moura têm uma receita para o Rio: Marcelo Freixo. Freixo é do PSOL, o partido que comanda a greve dos professores do Rio em parceria, agora admitida, com os black blocs. Boa parte da chatice de boa parte do cinema nacional decorre do fato de que cineastas costumam ter mais programas de governo na cabeça do que boas ideias para… cinema.
Não! Não estou aqui a advogar que cada um deva ficar no seu quadrado. Ao contrário da turma do “Procure Saber”, eu sou um árduo defensor dos Artigos 5º e 220 da Constituição. Só estou aqui a afirmar que precisamos parar com essa mania de achar que artistas carregam a iluminação política. Eles serão bons ou maus, iluminados ou não, apenas na arte que fazem. É o que interessa. Caetano é uma besta política E eu gosto de várias músicas suas, não é de hoje. Há reinterpretações que fez, como a de “Fera Ferida”, de Roberto Carlos (outra besta política), que são magistrais. Só não se deve levar a sério o que ele pensa como ser político. No caso e no momento, este senhor, em companhia de outros, está defendendo a censura.
Lá vou eu...
Mas a gente não aprende — e isso vale também para a imprensa. Nunca li um livro de Luiz Ruffato. Embora a minha área original de interesse seja a literatura, tenho dedicado meu tempo à política. Meu interesse pela literatura fincou morada no século 19, com raras exceções. Não porque eu seja chique demais. Não sou! É que cansei dos truques dos contemporâneos, geralmente mais ocupados com o “modo de dizer” o nada do que com o algo a dizer, mais ocupados em expor a própria alma do que as almas deste vasto mundo. E esse pode não ser o caso de Ruffato — logo, não expresso um juízo de valor sobre a sua obra.
Mas a gente não aprende — e isso vale também para a imprensa. Nunca li um livro de Luiz Ruffato. Embora a minha área original de interesse seja a literatura, tenho dedicado meu tempo à política. Meu interesse pela literatura fincou morada no século 19, com raras exceções. Não porque eu seja chique demais. Não sou! É que cansei dos truques dos contemporâneos, geralmente mais ocupados com o “modo de dizer” o nada do que com o algo a dizer, mais ocupados em expor a própria alma do que as almas deste vasto mundo. E esse pode não ser o caso de Ruffato — logo, não expresso um juízo de valor sobre a sua obra.
Mas lamento o discurso que fez em Frankfurt. E não apenas porque há reducionismos que não resistiriam a um cotejo mínimo com a história e com os fatos. Lamento porque o domínio que o levou a ter aquele palco privilegiado foi, até onde sei, a sua produção literária, não o aporte que ele possa agregar em matéria de leitura sociológica ou histórica sobre o Brasil — matéria em que demonstrou ser de uma anemia profunda.
Pouco me importa se a sua fala constrangeu também Marta Suplicy e Michel Temer, políticos que não estão entre os meus prediletos. Pouco me importa se também os petistas são gostaram de seu discurso — afinal, imagina-se ainda, lá fora, que o Brasil está prestes a ser uma Suíça. Pouco me importa que seu destempero verbal tenha desagradado também às esquerdas — esquerdistas não são, necessariamente, o oposto privilegiado a qualificar as minhas opiniões; na verdade, o que eles acham do mundo me interessa muito pouco.
O que não faz sentido é um escritor brasileiro, ainda que fosse um novo Machado de Assis, aproveitar um evento sobre livros para fazer um discurso político como um arauto da nacionalidade a anunciar: “Isto é o Brasil”. Para que o fizesse, precisaria estar munido de uma força representativa que, obviamente, não tem. E poucos se dão conta de que, então, o seu desabafo, ou que nome tenha, foi também um primor do autoritarismo. “Ah, o Reinaldo e as esquerdas criticando juntos…” O Reinaldo fala o que quer e não se importa com o que os outros falam — à esquerda, ao centro, à direita… Ruffato denunciou, por exemplo, um certo genocídio de índios… Só se for aquele que os tupis promoveram contra… outros índios!
Volto ao ponto central
Artistas valem pela arte que produzem, qualquer que seja ela. Escrevo isso até em defesa do que há de bom na obra de Caetano Veloso e de outros tontos que estão com ele na empreitada censória. E cabe também a nós tratar com mais cuidado o domínio da política, que é onde se cuida de questões como direitos individuais e liberdade de expressão. Durante um largo tempo, tomamos como pensadores profundos gente que não ia além da opinião ligeira, da idiossincrasia ou do rancor convertido em norte ético.
Artistas valem pela arte que produzem, qualquer que seja ela. Escrevo isso até em defesa do que há de bom na obra de Caetano Veloso e de outros tontos que estão com ele na empreitada censória. E cabe também a nós tratar com mais cuidado o domínio da política, que é onde se cuida de questões como direitos individuais e liberdade de expressão. Durante um largo tempo, tomamos como pensadores profundos gente que não ia além da opinião ligeira, da idiossincrasia ou do rancor convertido em norte ético.
No que concerne às biografias, encerro tomando emprestada uma observação da jornalista Mônica Waldvogel no Twitter. A restrição pela qual lutam esses artistas não vai proteger apenas as suas respectivas vidas (irrelevantes — esse adjetivo é meu, não dela). Ela resguardaria também a biografia de torturadores, de assassinos, de malfeitores. Um biógrafo ou jornalista, vejam vocês, teria de pedir tanto a Roberto Carlos e Caetano Veloso como a Fernandinho Beira-Mar e Marcola a autorização para narrar a sua saga.
De certo modo, é bom que esse debate esteja em curso. Expõe de forma dramática o atraso mental daqueles que um dia foram feitos heróis da resistência. E é bom que esses heróis morram de uma overdose de realidade. Só não devemos começar a erigir outros… Por Reinaldo Azevedo
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