Marcelo Coelho, colunista da Folha,
escreve hoje um artigo em seu blog sobre a questão da
maioridade penal. Está lá desde as 3 da manhã, com um comentário apenas. Sei
que ele deve ser dos preferem qualidade a quantidade. Na hipótese de que o
texto seja bom, por que não torná-lo público, não é mesmo? Decidi trazê-lo à
luz. Ele até vai bem, com certa ponderação, demonstrando a fraqueza dos
argumentos dos que são contra a redução a maioridade penal de 18 para 16 anos
(ele também é). É um jeito de pensar. Coelho desmoraliza os argumentos
dos seus próprios companheiros, mas não diz quais seriam os bons. O incauto
chega a pensar que ele também quer mudar a lei. Longe do estéril turbilhão da
rua, o Beneditino de Olavo Bilac escrevia. Com paciência e sossego, trabalhava,
e teimava, e limava, e sofria e suava… Não Coelho! O colunista perdeu a
paciência. Deve ter ficado com fome. Sei como é. Passo as madrugadas
escrevendo. É preciso resistir a quatros tentações: a) ao assalto à geladeira
(e ao chocolate e à Negresco comprados para as crianças…); b) ao assalto das
soluções fáceis para problemas difíceis; c) a resolver tudo com uma citação
encoberta que leva o leitor a suspeitar de que você é mais profundo do que
parece: c) ao “vai assim mesmo”, já que me perdi… Não tendo sido a alternativa
“a”, Coelho sucumbiu à “d”. Depois de ter desmoralizado os argumentos de seus
próprios companheiros, produziu o seguinte parágrafo (em vermelho), que
submeterei ao escrutínio lógico:
“Quem pede leis mais
rigorosas simplesmente usa um eufemismo: queria que todo criminoso fosse
fuzilado. Quem é contra leis mais rigorosas sabe que, na verdade, as que
existem são outro eufemismo. Falam em “instituição correcional”, em “presídio”,
quando deveriam dizer “campo de concentração”, “pocilga”, ou “masmorra”. Antes,
dizia-se “Carandiru”.
Pena para o bom senso Coelho não ter
atacado a Negresco em vez de ter escrito essa enormidade. Então vamos ver. Duzentos
e quarenta e nove anos depois de Cesare Beccaria ter escrito “Dos Delitos e das
Penas” para nos lembrar, e é um fundamento quase universal do direito, que há
de haver uma relação de proporcionalidade entre a pena aplicada a um criminoso
e o agravo por ele praticado contra a sociedade, Coelho teve o seu momento
“fiat lux” e descobriu que falar em pena mais rigorosa para um crime ou outro é
só uma outra maneira de pedir o fuzilamento. Que gênio da raça! Que pensador
delicado! Aos 26 anos (quando escreveu, tinha menos), Beccaria se estendeu
sobre os matizes das penas justamente para que não se matasse a esmo;
justamente para que o desagravo não fosse, então, mero exercício de crueldade e
vingança. Na página 81 da edição que tenho aqui à mão, leio:
“(…) se dois crimes
que atingem desigualmente a sociedade recebem o mesmo castigo, o homem
inclinado ao crime, não tendo por que temer uma pena maior para o crime mais
monstruoso, decidir-se-á mais facilmente pelo delito que lhe seja mais
vantajoso, e a distribuição desigual das penas produzirá a contradição,
tão notória quanto frequente, de que as leis terão de punir os crimes que
fizeram nascer”.
Para Coelho, Beccaria era um bestalhão,
vejam vocês!,mesmo quando escrevia coisas como esta: “Quando
as penas tiverem se tornado menos cruéis, a clemência e o perdão serão menos
necessários”. Bobagem! Para o nosso pensador, mesmo
quem é contra leis mais rigorosas está, no fundo, condescendendo com campos de
concentração e masmorras. Não há saída para o homem. Pedir pena maior é coisa
de fuziladores encobertos. Pedir pena menor é apanágio dos cínicos. Que
madrugada atormentada! Coelho deve ter passado a noite lendo Cioran depois de
ter comido muita dobradinha com Fanta Uva… O que parece pensamento pode ter
sido só um sonho ruim. A digestão fica mais lenta depois dos 50, sei bem. Poder-se-ia
inferir que não sendo virtuosos, então, o homem que quer pena maior nem o que
quer pena menor, que a virtude, para Coelho, está no meio (virtus
in medium est). Mas também não! Porque, no meio,
estão as leis que temos, com os presídios que temos. Então fazer o quê? Em seu
texto, ele referenda a necessidade de mais educação — repetindo o erro muito
comum das esquerdas ilustradas latino-americanas que tendem a confundir cadeia
com escola… No fim das contas, sempre se está de volta, quando a conversa é
essa, a Rousseau, o “castelão e vagabundo”, segundo quem o homem é um gaveta, e
a sociedade responde pelo conteúdo que lá vai. Se criminoso ou virtuoso, pouco
importa, ele não tem escolha. E depois dizem que o catolicismo, com a sua fé no
livre arbítrio, é que é reacionário. A visão de mundo que está na origem desse
misto de Cioran com buchada de bode é a velha e nefasta engenharia — ou
reengenharia — social: destituídos de vontade, incapazes de fazer escolhas,
meros produtos passivos do que a sociedade perversa fez com eles, os homens
precisam, então, de algo ou de alguém que lhes dê direção. Todos os ditadores e
todas as tiranias sempre se aproveitaram do miolo mole de supostos humanistas
como Coelho para dizer: “Deixem com a gente; sabemos como fazer”. Aí, em
nome do “novo homem”, do “homem produto do meio”, da “justiça social que
elimina as diferenças”, mataram milhões e mandaram seus adversários para
“campos de concentração, pocilgas e masmorras”. Vejam lá o taradão da hora
da Venezuela, fuzilando pessoas nas ruas em nome do bem e da virtude. “O
direito de punir não pertence a cidadão nenhum em particular, pertence às leis,
que são os órgãos da vontade de todos. Um cidadão ofendido pode renunciar à
porção desse direito, mas não tem nenhum poder sobre a dos outros”.
É Beccaria, o bestalhão, não Marcelo
Coelho, o gênio da raça. Só existe democracia porque existem penas para os
delitos. “Não é assim também nas ditaduras, Reinaldo?” Não! As ditaduras não
precisam de delitos para que existam as penas. Elas só precisam falar em nome
de um projeto, de uma aurora, de um novo amanhecer — a “igualdade”, por
exemplo… No Paraíso, na Cidade de Deus, não é assim. Não existem nem pecado nem
perdão. Nem delitos nem penas. Assim é na Cidade dos Homens. Por
Reinaldo Azevedo
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