Ministro do Supremo e presidente do TSE lembra que ninguém pode reivindicar a soberania na democracia e que Moro e os procuradores não podem ser canonizados
Por Reinaldo Azevedo - O ministro Gilmar Mendes, membro do Supremo e presidente do TSE, pôs todos os pingos nos is numa entrevista à Folha desta segunda. Falou com a coragem e clareza habituais — e não! não entrou no mérito de nenhuma das causas que estão no Supremo. Alvo da reação corporativista de uma tal frente que reúne associações de juízes e procuradores, o ministro deixa claro que não se assusta com facilidade nem recua diante de alaridos. Concordo com cada uma de suas análises, com cada frase estampada no jornal. Um dos melhores momentos da entrevista está expresso nesta resposta, que é impecável. Prestem atenção: “Deixa eu dizer logo: a Lava Jato tem sido um grande instrumento de combate à corrupção. Ela colocou as entranhas do sistema político e econômico-financeiro à mostra, tornando imperativas uma série de reformas. Agora, daí a dizer que nós temos que canonizar todas as práticas ou decisões do juiz Moro e dos procuradores vai uma longa distância. É preciso escrutinar as decisões e criticar métodos que levam a abusos. Eu mesmo já votei em favor da concessão de habeas corpus e defendo limites temporais para as prisões preventivas. Da mesma forma, as chamadas dez medidas têm que ser examinadas com escrutínio crítico. Medidas propostas como iniciativa popular não têm que ser necessariamente aprovadas pelo Congresso.” Alguém é capaz de discordar de Mendes nesse caso? Alguém acha que juízes ou procuradores devam ser canonizados? Será que as tais dez medidas têm de ser aprovadas sem um debate ao menos, só porque contam com mais de 2 milhões de assinaturas. E daí? Todo mundo sabia exatamente o que estava pedindo? Ora… O ministro é um defensor, e eu também sou, como sabem, da lei que pune abuso de autoridade. Já expliquei aqui que o texto é de 2009 e não foi pensado para frear a Lava Jato, como sustentam alguns tolos, desinformados e chicaneiros. A gritaria contra o texto é grande porque, afinal, o juiz Sergio Moro e Rodrigo Janot são contra. Afirma o ministro: “Parece que eles imaginam que devam ter licença para cometer abusos! O projeto é de 2009 e não trata exclusivamente de juízes e de procuradores, mas sim de todas as autoridades: delegados, membros de CPIs, deputados. Tanto que a maior resistência à proposta partiu de delegados de Polícia Civil na época. Por isso o projeto ficou tanto tempo arquivado. Agora, nós temos que partir de uma premissa clara: a definição de Estado de Direito é a de que não há soberanos. Juízes e promotores não são diferentes de todas as outras autoridades e devem responder pelos seus atos. E a verdade é que nós temos um histórico de abusos que vai de A a Z, do guarda de trânsito ao promotor, de prisões abusivas, de vazamento de informações sigilosas, para falar apenas das coisas correntes. Esse é o quadro.” O ministro alerta também para o fato de que a justa projeção que ganhou a Lava Jato não pode servir para que procuradores e juízes se coloquem acima do Estado de Direito, com o que há de concordar qualquer pessoa civilizada, creio. Nos seus termos: “Quando pessoas de certa credibilidade [como os procuradores] colocam a pergunta ‘Você é a favor ou contra o combate à corrupção?’, é claro que muitos firmarão o documento. As pessoas não são do mundo jurídico e não conhecem suas peculiaridades. Mas certamente não concordam que se validem tortura ou prova ilícita nem que se dificulte o habeas corpus. Cada um tem seu ofício por verdadeiro, e talvez eles [procuradores] estejam traduzindo essa visão. Mas estão usando a Lava Jato para fortalecer a corporação e seus privilégios e, além disso, a visão de mundo deles. Que não é necessariamente a de todos nem coincide, em suas linhas básicas, com o Estado de Direito. O Congresso tem que examinar isso de maneira crítica.” Numa defesa em tese da existência de um teto de gastos, o ministro dá uma pista de por que juízes, procuradores e defensores públicos têm sido contra a ideia. Vamos ver: “Será a grande chance de se trazer todos os poderes para uma realidade institucional, com publicidade de seus gastos na internet para que sejam submetidos a uma supervisão geral. A autonomia administrativa e financeira não dá blindagem para ninguém sair gastando de maneira secreta. A autonomia, pensada para tirar o Judiciário e o MP da dependência do Executivo, está sendo manipulada, lida como soberania, o direito de fazer qualquer coisa. A Defensoria Pública da União conseguiu autonomia e seu primeiro ato foi se conceder auxílio moradia. Órgãos que poderiam cumprir função racionalizadora, como o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), acabaram cooptados. O último ato da gestão passada do CNJ foi estender o recesso de 20/12 a 6/1, da Justiça Federal, que deveria ter sido extinto, para a Justiça Estadual. O CNJ se transformou, em certas gestões, num instrumento de corporação. Quando há alteração de vencimentos na esfera federal, cada legislador estadual teria que deliberar sobre os vencimentos na esfera estadual. O CNJ decidiu que isso seria automático, violando a autonomia dos Estados. Em suma, criamos um monstro.” Gilmar Mendes está de parabéns. Sob o pretexto de caçar corruptos, e ainda que isso seja verdade, ninguém tem o direito de violar as leis nem de usar seus privilégios para hipertrofiar o próprio poder ou o de sua corporação. Se isso acontece, a democracia é que vai para o vinagre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário