domingo, 5 de outubro de 2014

Investigações sobre o caso Alstom mostram que a operação começou antes do governo tucano

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MISTÉRIO DO ESCLARECIMENTO Sede da Alstom em Paris (à esq.). O “Neves” da investigação sobre a empresa (no alto) era na verdade “Neveu”, sobrinho, em francês. Mário Bicudo (no centro) era sobrinho do jurista Hélio Bicudo (abaixo), apelidado de “Tonton” – titio, em francês (Foto: Jacques Brinon/AP)
Os primeiros indícios de que agentes públicos brasileiros recebiam propina da multinacional francesa Alstom e de que eram parte de um esquema mundial de corrupção vieram à tona em 1997. A principal prova era um memorando interno da empresa, um manuscrito em que apareciam três codinomes ligados a três indicações de percentuais (leia acima). O memorando é essencial para entender o funcionamento do esquema que pagou, de acordo com o Ministério Público Federal, o equivalente a R$ 23,3 milhões (em valores atuais) em propina a agentes públicos do Estado de São Paulo. Em troca da propina, segundo as acusações, a Alstom conseguiu contratos com estatais paulistas para ampliar e construir subestações de energia que abasteceriam o metrô. Dois dos codinomes da corrupção foram rapidamente desvendados. O primeiro, a sigla “C.M.”, referia-se ao lobista Cláudio Mendes. O segundo nome, “Splendor”, não era um codinome, mas uma empresa de consultoria que trabalhava para a Alstom. O terceiro se tornou um grande mistério: “Neves”. Quem era “Neves”? Até recentemente, não se sabia. Num depoimento para autoridades suíças, a que ÉPOCA teve acesso, o ex-executivo e consultor da Alstom Michel Cabane desvendou o mistério. Ele se devia, em parte, à caligrafia do autor do memorando. O nome, na verdade, não era “Neves”, mas “Neveu”, ou sobrinho em francês. “Neveu” era Mário Bicudo Filho, um ex-funcionário da Companhia Energética de São Paulo (Cesp) que já morreu. Essa descoberta levou a outra: o esquema Alstom não começou no governo tucano – o domínio do PSDB em São Paulo se iniciou com a eleição de Mário Covas em 1994 –, mas bem antes, durante as gestões de Orestes Quércia (1986-1990) e Luiz Antonio Fleury Filho (1991-1994). Mário Bicudo atuava nesse período, assim como o lobista Cláudio Mendes. Se Mário Bicudo era o sobrinho, quem era o tio? A resposta, confirmada pelo depoimento: o tio de Mário Bicudo era o jurista, ex-procurador e ativista dos direitos humanos Hélio Bicudo. Nos documentos da Alstom, ele aparece identificado pelo codinome “Tonton” – titio, em francês. Cabane disse aos procuradores suíços que Hélio Bicudo esteve na folha de pagamentos da Alstom. Segundo Cabane, Bicudo recebia por ser um “patrocinador” da Alstom dentro do governo. Cabane disse ainda às autoridades suíças que Hélio Bicudo não participou do “aditivo 10 do projeto Gisel” – nome pelo qual é conhecida, na investigação, a propina paga em troca de prestação de serviços. Seus préstimos foram exercidos antes. Outro depoimento a que ÉPOCA teve acesso esclarece os laços entre a Alstom e Hélio Bicudo. O ex-consultor da Alstom Jean-Pierre Courtadon disse a promotores paulistas que “Tonton”  – o titio – era uma espécie de “conselheiro informal da Cegelec” (empresa que pertenceu ao grupo Alstom) e era “amigo da diretoria da empresa”. De tão estimado, ganhava “passagens aéreas para visitar a França”. A ligação de Hélio Bicudo com o setor elétrico remonta à década de 1960. Durante o governo Carvalho Pinto (1959-1963), ele presidiu a estatal Centrais Elétricas de Urubupungá (Celusa). Ex-procurador de Justiça, com um currículo de 32 anos no Ministério Público paulista, Hélio Bicudo fez fama pela forma com que enfrentou o Esquadrão da Morte durante a ditadura militar. O grupo, liderado pelo ex-delegado Sérgio Paranhos Fleury, executava suspeitos de crimes. Suas denúncias levaram agentes do regime à prisão. Paralelamente ao cargo de procurador, que tem entre suas atribuições fiscalizar irregularidades com dinheiro público, Hélio Bicudo trabalhou para a Alstom. O próprio Hélio Bicudo confirmou a informação em testemunho ao MP, em setembro de 2013.

COMEÇOU CEDO Os ex-governadores Orestes Quércia e Luiz Antonio Fleury Filho. Segundo as investigações,  o “caso Alstom” começou na era PMDB (Foto: Mônica Vendramini/Folhapress)
No depoimento, Hélio Bicudo disse que o primeiro contato com a Alstom ocorreu na década de 1970. Na ocasião, ele afirmou que  foi procurado para prestar consultoria jurídica na área de licitações. Disse que não lembrava dos serviços prestados, mas afirmou que tinham ligação com a estatal Cesp. Questionado se tinha conta no exterior, Hélio Bicudo afirmou ser possível, “pois recebia da Alstom mediante remessas bancárias internacionais”. Segundo promotores envolvidos na investigação, há indícios de que Hélio Bicudo tenha praticado, ao menos, tráfico de influência – crime prescrito pelo tempo e pelas mudanças na legislação. O advogado de Hélio Bicudo, Claudio José Langroiva, disse a ÉPOCA que seu cliente já prestou os esclarecimentos aos promotores e que, no depoimento, afirmou que, no período da consultoria, não havia impedimentos legais para que integrantes do MP advogassem. A partir do desvendamento do codinome “Neves”, ou “Neveu”, os investigadores começaram a entender o caso Alstom antes das gestões tucanas. O primeiro contrato do aditivo que se tornou alvo de ação na Justiça Federal ocorreu em junho de 1990. Segundo ex-consultores da Alstom, ao menos três pessoas próximas à gestão peemedebista procuraram a empresa para acelerar o projeto em troca de propina. Segundo o depoimento dos representantes da Alstom, a primeira oferta partiu do ex-secretário de Energia da gestão Quércia, João Oswaldo Leiva, que pediu 10% do valor total do aditivo. Depois, segundo o mesmo depoimento, Mario Bicudo Filho, ex-funcionário da Cesp, solicitou 8,5% – e chegou até a selar um acordo de “consultoria” com a Alstom por escrito, em 20 de abril de 1994. Pelo documento, redigido em francês, receberia a “comissão” se tirasse o aditivo do papel até o último dia de 1994, quando o PMDB passaria o comando do Estado ao PSDB. Por último, relatam no processo os representantes da Alstom, a companhia foi procurada por Cláudio Mendes, o “C.M.”, que exigiu 7%. Ele formalizou um acordo com a Alstom para receber a “comissão” por meio da empresa Santo Trading, controlada por ele e sediada na Irlanda. Mendes não foi localizado por ÉPOCA. Em depoimento ao MP, disse que nunca teve contas ou empresas no exterior nem ouviu falar de projeto Gisel. Negou também ser lobista. Procurado por ÉPOCA, o ex-governador Fleury diz não se lembrar de Mendes nem de Mário Bicudo, apenas do político João Leiva. Afirma também que “não ocorreram fraudes nem irregularidades para financiar caixas de campanha em seu governo”. Na Justiça, Mendes reafirma constantemente que não recebeu propina. Os recursos provavelmente não chegaram mesmo. É que, assim como “Neveu” ou Leiva – morto em 2000 –, ele dependia de que a operação se efetivasse até o fim do governo do PMDB. Nenhum banco concordou em financiar o projeto. Na época, o Brasil ainda amargava a falta de credibilidade pós-moratória perante o mercado internacional, e isso abalava a confiança nas estatais. Os desembolsos da Alstom relacionados ao aditivo 10 só começaram efetivamente em outubro de 1998. Foi quando o governo, administrado por Mário Covas (PSDB), tirou o projeto do papel. De acordo com Cabane, houve uma corrida contra o tempo – de corruptos e corruptores – para começar o projeto antes das privatizações das estatais paulistas de energia. De acordo com o Ministério Público Federal, a Alstom distribuiu o suborno a agentes públicos paulistas até 2002. Procurada por ÉPOCA, a Alstom disse: “A empresa informa que colabora com as autoridades sempre que solicitada, mas o processo mencionado é sigiloso,  e o acesso não nos foi concedido. A empresa reforça que sempre segue as regras de licitações e as leis dos países em que atua”. 

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