quinta-feira, 31 de maio de 2018

Morre o jornalista Audálio Dantas, o homem que comandou o fim da ditadura militar dez anos antes da saída de Figueiredo pela porta dos fundos do Palácio do Planalto


Morreu na tarde desta quarta-feira, em São Paulo, o jornalista Audálio Dantas, aos 88 anos. Ele estava internado no Hospital Premier, por causa de um câncer no intestino, fígado e pulmões. Audálio Dantas nasceu em Tanque D’Árca, em Alagoas, e foi presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo na época da ditadura militar, quando o jornalista Vladimir Herzog foi morto pela repressão. Este episódio é decisivo em sua vida. E na vida do Brasil. 

No dia 24 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog apresentou-se no Doi-Codi (Operação Bandeirantes), que funcionava na delegacia de polícia da rua Tutóia, no bairro Paraíso, em São Paulo. Ele tinha sido procurado por agentes do II Exército para depor. Vladimir Herzog era diretor de jornalismo da TV Cultura, tinha sido nomeado para o cargo pelo secretário de Cultura do Estado de São Paulo, o empresário José Mindlin.

Em 1974, o general Ernesto Geisel tomou posse da Presidência da República com um discurso de abertura política (na época chamado de "distensão", lenta e gradual), o que na prática significaria a diminuição da censura, investigar as denúncias de torturas e dar maior participação aos civis no governo. Mas, o governo Geisel se viu diante de dois grandes problemas: a crise internacional do petróleo, em 1973, levou a uma crise econômica no Brasil, daí à perda de apoio popular da ditadura militar. Nas eleições, a ditadura sofreu derrotas avassaladoras em todo o País, com uma massiva eleição de candidatos do MDB. Nesse contexto, os meios militares estavam divididos. Uma parte seguia Geisel e seu projeto de "distensão" democrática; do outro lado, a linha dura, chefiada pelo ministro do Exército, Silvio Frota. Os membros da linha dura já trabalhavam com a idéia da sucessão de Geisel, para colocar Silvio Frota na Presidência da República. Para isso era preciso apresentar o País como se estivesse vivendo em um período de alta conturbação política, social e econômica. Como todos os grupelhos comunistas e terroristas, optantes pela luta armada, já tinham sido dizimados, liquidados, varridos do mapa, então era preciso criar um inimigo, e os defensores da "linha dura" viraram-se para o único inimigo disponível, o Partido Comunista do Brasil, que tinha se mantido desde 1964 de maneira contundente contrário à aventura da luta armada, inspirada pela teoria "foquista" (do foco revolucionário), derivada de Regis Debray e da OLAS (cubana, criação de um, dois, três, mil focos revolucionários, inspirada na guerrilha vietnamita).

Os comunistas passaram a ser perseguidos. Grande parte dos comunistas eram jornalistas. Eles dominavam as redações de jornais, rádios, televisões, revistas. Então começaram a ser presos. O   São Paulo, o comandante do II Exército, general Ednardo D'Ávila Mello, fazia afirmações de que os comunistas estariam infiltrados no governo de São Paulo, na época chefiado por Paulo Egydio Martins, o que criou tensão entre estes. Vladimir Herzog era comunista, então virou alvo. Apesar de avisado pelo jornalista Paulo Markun (era repórter do jornal O Estado de S. Paulo, meu colega, então casado com a jornalista Diléia Frate, também repórter da editoria Geral do jornal), que havia sido preso, de que seria igualmente preso, Vladimir Herzog resolveu se apresentar no Doi-Codi, o que fez no dia 24 de outubro de 1975, uma sexta-feira, dia do início do Shabat (Herzog era um judeu nascido na antiga Iugoslávia, e que havia fugido de seu país natal devido ao nazismo). Menos de 24 horas estava morto, assassinado pela tortura do aparelho de repressão da ditadura militar. Os choques elétricos o mataram. Havia também sinais de estrangulamento em torno de seu pescoço. 

O clima para sua prisão havia sido criado por dois crápulas históricos, os deputados estaduais arenistas Wadih Helu e José Maria Marin. Este último, hoje, todo mundo sabe o quanto foi sempre corrupto, ordinário, vagabundo moral completo. Está preso em Nova York e deverá ser condenado no processo da Fifa. Não sairá mais da cadeia. Herzog ficou preso no DOI-Codi com mais dois jornalistas, George Benigno Jatahy Duque Estrada e Rodolfo Oswaldo Konder. Ambos eram comunistas, membros do Partido Comunista do Brasil. Duque Estrada era o editor da área de arte e diagramação do jornal O Estado de S. Paulo. Na manhã de sábado, 25, Vladimir Herzog foi interrogado e negou qualquer ligação ao PCB. A partir daí, os outros dois jornalistas foram levados para um corredor, de onde puderam escutar uma ordem para que se trouxesse a máquina de choques elétricos. Para abafar o som da tortura, um rádio com som alto foi ligado. Logo, Rodolfo Konder foi levado à tortura, e Vladimir Herzog não mais foi visto com vida.
O Serviço Nacional de Informações (SNI) recebeu uma mensagem em Brasília de que naquele dia 25 de outubro, "cerca de 15 horas, o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI/CODI/II Exército". Na época, era praxe que o governo militar divulgasse que as vítimas de suas torturas e assassinatos haviam morrido por "suicídio", fuga ou atropelamento. O corpo foi entregue à família para ser velado, com a ordem de que o caixão não fosse aberto. Mas, Vladimir Herzog era judeu, e a tradição judaica manda que suicidas sejam sepultados em local separado. Quando membros da Chevra kadisha – responsáveis pela preparação dos corpos dos mortos segundo os preceitos do judaísmo – preparavam o corpo para o funeral, o rabino Henry Sobel, líder da comunidade, viu as marcas da tortura. "Vi o corpo de Herzog. Não havia dúvidas de que ele tinha sido torturado e assassinado", declarou. Assim, foi decidido que Vladimir seria enterrado no centro do Cemitério Israelita do Butantã, o que tinha o decidido significado de desmentir publicamente a versão oficial de suicídio. As notícias sobre a morte de Vlado se espalharam, atropelando a censura à imprensa então vigente. O rabino Sobel diria mais tarde: "O assassinato de Herzog foi o catalisador da volta da democracia". E essa é uma grande verdade. Vladimir Herzog morreu no shabat e nesse período nenhum judeu pode ser enterrado. O enterro foi prorrogado. Tão logo se espalhou boca a boca a notícia da morte de Vladimir Herzog, todos os jornalistas de São Paulo abandonaram os seus postos de trabalho e foram para a sede do sindicato, na rua Rego Freitas, quase em frente à Igreja da Consolação. Houve um comparecimento em peso no enterro de Vladimir Herzog. 

Durante uma semana houve uma vigília no sindicato dos jornalistas. Sete dias mais tarde, houve uma enorme manifestação pública no culto ecumênico realizado na catedral da Sé, oficiado pelo cardeal Dom Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor James Wright. O general Ednardo D'Ávila Mello, em desespero, mandou fechar todas as grandes avenidas de São Paulo que convergiam para o centro, usando tropas do exército. Eu morava na rua Eça de Queiroz, na Vila Mariana. No começo da tarde, saí do meu apartamento junto com minha mulher, de carro. Não conseguimos passar da rua Vergueiro, onde tinha um bloqueio do Exército. Voltamos, estacionei o carro, e mais uma vez seguimos em direção à rua Vergueiro, a pé, para pegarmos o metrô. Descemos na estação da Praça da Sé, lotada, apesar de todo o bloqueio implantado na cidade pelas forças militares. Em cada janela dos prédios no entorno da Praça da Sé surgia um meganha com máquina fotográfica ou de filmar. Exibíamos nossas caras para eles. Ali acabou o medo. Ali acabou a ditadura militar. Poucas semanas depois, mataram ainda o operário Manoel Fiel Filho sob tortura. Então Geisel entendeu que, ou reagia, ou seria dominado pelos seus companheiros de farda da linha dura, e seria apenas um boneco deles. Geisel demitiu o general Ednardo D´Ávila Neto do comando do II Exército. Em Brasília, o general Sylvio Frota mandou convocar todos os generais. Geisel soube e, tão logo esses generais chegavam, eram levados para o Palácio do Planalto. Evidentemente, Sylvio Frota estava preparando um golpe. Geisel o abortou, demitiu o ministro do Exército e deu ordem para ele se recolher preso. 

A morte de Vladimir Herzog sob tortura acelerou o encaminhamento do País para o regime democrático, embora a ditadura ainda tenha perdurado sua agonia por mais dez anos, só terminando com a saída do Palácio do Planalto, pela porta dos fundos, do último general presidente, João Figueiredo, pedindo para ser esquecido. Após a morte de Vladimir Herzog, tivemos a anistia, em 1979, o fim do AI 5, a recriação dos partidos políticos, a eleição direta de 1982, e para as prefeituras de capitais e demais áreas de segurança nacional, em 1985. Finalmente, o País completou esse processo com a Constituinte, em outubro de 1988. 

Audálio Dantas presidiu o Sindicato dos Jornalistas nesse cenário altamente elétrica em 1975, Foi de uma grande serenidade, mas também de grande firmeza. Denunciou a tortura com firneza e clamou pelas liberdades e pela vida como cabia fazer. Hoje vemos tudo isso como história. Para as novas gerações, para as muitas dezenas de milhões de brasileiros que nasceram depois de 1985, isso não é matéria de memória. É algo que não faz parte de suas vidas, de suas memórias. Mas, o mundo que desfrutam hoje deriva diretamente da ação de homens como Audálio Dantas e os muitos jornalistas e cidadãos que resistiram naquela época sombria e não se deixaram submeter pelo medo da repressão.

 

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