domingo, 18 de março de 2018

A esquerda mundial é antissemita, e o antissemitismo atual é travestido de antissionismo

Militantes do PSOL queimando bandeira de Israel, liderados por Babá, suplente da vereadora assassinado Marielle Franco
O antissemitismo não é a expressão de preconceito e ódio irracionais. Ele pode ser acompanhado por manifestações psicóticas e paranóides, mas existe porque faz sentido em contextos históricos. Fez sentido na época medieval européia dominada pela Igreja, porque os judeus não aceitaram os evangelhos e permaneceram apegados a uma revelação superada na perspectiva cristã. E mais, sobre eles pesava a acusação mais abominável, a de deicídio. Ao longo dos séculos, essa alteridade negativa e incontornável justificou o seu isolamento moral e legal, expulsões e massacres.

Luis Milman
Fez sentido para iluministas do século XVIII, como Voltaire, que dedicou, em seu famoso Dicionário Filosófico, de 1756, 38 dos 118 artigos aos judeus, segundo ele, os nossos mestres e inimigos, em quem acreditamos e a quem detestamos. Mestres do cristianismo, que Voltaire criticava, Os iluministas eram anti-clericais e deístas. No lugar da revelação das escrituras situavam a Razão, como meio de conhecer a Deus. Não havia sentido, para eles, na existência de um povo apegado ao que eles chamavam de superstições arcaicas. 

Kant se referia a eles como “os palestinos entre nós”. Fichte apregoava a expulsão dos judeus para a Ásia, lugar a que pertenciam. Outros pregavam que o único modo de lidar com o judaísmo - uma religião, como dizia Hegel, ossificada -, era a completa assimilação dos judeus e a extinção do judaísmo. Já os românticos alemães advogavam a impossibilidade da assimilação, porque o problema não era religioso, mas nacional, ou seja, era possível aos judeus converterem-se ao protestantismo ou ao catolicismo, mas eles jamais poderiam se tornar alemães.

Fez sentido para os primeiros socialistas do século XIX, que viam no dinheiro e no comércio o maior mal da humanidade. Fourier, Proudon e Toussenel odiavam os judeus identificados com o comércio e a usura. O mesmo vale para os comunistas. Marx, em 1843, escreveu o ensaio a “Questão Judaica”, no qual dizia, que a humanidade deve se emancipar do judaísmo. Para ele, o judaísmo real, não a sua ilusória forma espiritual, era o comércio. O Deus dos judeus é o dinheiro, dizia ele.

Fez sentido para os nazistas, porque os judeus eram uma minoria desarmada. A eles foi atribuída a culpa pela derrota na 1ª Guerra Mundial, pela crise econômica, pelo comunismo, pelo capitalismo e pela degeneração moral alemã. Em sua versão do judeu como bode expiatório, Hitler pôde mobilizar os alemães para desapropriá-los dos bens, para confiscar sua nacionalidade, depois sua humanidade e, ao fim, sua vida. 

Fez sentido para o bolchevismo, em especial para o stalinismo, um tipo de credo de pretensão universalista cujo grande adversário é a singularidade, que se traduz em diferença nacional, dissensão, livre arbítrio, rebeldia, espírito crítico, individualismo e ausência de disciplina. Esses são os sete desvios revisionistas segundo a doutrina do Partido Comunista. Note-se que o marxismo-leninismo sabia ser impossível, pelo menos num horizonte discernível, extinguir as nacionalidades. Por isso pretendeu integrá-las, subordinando-as ao conceito mais amplo de classe trabalhadora internacional.

O surgimento do sionismo ocorre em paralelo com o surgimento do comunismo na Rússia. Um povo sem terra, com experiência milenar de discriminação, havia finalmente criado seu movimento de emancipação nacional, concomitante à onda nacionalista que agitou a Europa na véspera e na esteira da dissolução dos impérios Austro-húngaro, Alemão, Czarista e Otomano. Mas os judeus não possuíam direitos nacionais para os comunistas. A Revolução de Outubro de 1917 confrontou o judeu russo com um ultimatum: integrar-se ou assumir-se enquanto uma espécie de apóstata, algo muito semelhante ao que aconteceu na Idade Média, principalmente durante a Inquisição, A “questão judaica” permanecia sem solução para a pátria soviética. Aos judeus foi oferecida mais uma vez a assimilação, com a consequente perda da identidade cultural, e religiosa. O Bund, a União dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia, criado em 1897, o movimento socialista que pregava a autonomia dos judeus, por razões culturais, foi dissolvido em 1921, no partido bolchevique.

Na época de Stalin, o apelo ao antissemitismo denunciou a degradação da utopia comunista. Os judeus foram expurgados do Partido Comunista e passaram a ser designados pelo epíteto de cosmopolitas e sionistas. Na era pós-stalinista, a propaganda soviética recorreu a estereótipos clássicos dos judeus e a uma terminologia antissemita que adquiriu cidadania no Partido para designar a sua falta de patriotismo.

Faz sentido hoje porque, depois da Grande Desilusão, o colapso da URSS em 1991, a esquerda transferiu a luta contra o capitalismo e imperialismo para o terreno do anti-americanismo, do qual o antissionismo torna-se objetiva e conceitualmente dependente. O ódio aos EUA tomou o lugar da crítica marxista ao capitalismo. O declínio do marxismo teórico e sua destituição do papel orientador que exercia em relação à práxis das organizações de esquerda devem-se, em grande medida, a três fracassos, dois econômicas e um político-moral:

(a) O primeiro, o fracasso de sua previsão célebre, segundo a qual a economia de mercado seria atingida por uma crise fatal em virtude de suas contradições internas, a partir do antagonismo entre a maximização da taxa de lucro (a acrescente acumulação de capital pela burguesia) e a crescente pauperização da população (o proletariado). Nada disso ocorreu. O capitalismo mostrou, ao contrário do que os marxistas clássicos previam, ser muito mais complexo em suas relações de produção e consumo, em sua capacidade de distribuição de riqueza e na sua constante renovação tecnológica, de forma a propiciar uma gradativa elevação nas condições de vida dos trabalhadores, especialmente nos países desenvolvidos, nos quais Marx dizia que as contradições eram mais agudas e a implantação socialista ocorreria inevitávelmete.

(b) O segundo fracasso foi a aplicação da economia planificada e coletivista, na qual a produção é prévia e racionalmente planejada por especialistas e os meios de produção são propriedade do Estado; neste modelo, a atividade econômica é controlada por uma autoridade central que estabelece metas de produção e distribui as matérias-primas para as unidades de produção. A economia planificada caracterizou-se pelo surgimento de uma grande burocracia estatal e pela falta de inovação. Nela, houve uma discrepância colossal entre a produção de bens de capital (máquinas e equipamentos) e de bens de consumo, criando um enorme desequilíbrio entre a falta de oferta de bens e a demanda. Decorreu daí o constante empobrecimento da população, o surgimento de um mercado negro quase institucional e a corrupção da nomenklatura, os membros do partido e da burocracia

(c) O fracasso político-moral dos países comunistas nos quais o socialismo real não promoveu nem a liberdade nem a igualdade, como se sabe. Ao longo do século XX, o comunismo implantou-se na forma de ditaduras opressivas, que praticaram extermínio e genocídio.

A esquerda ocidental, alinhada à URSS, depois do colapso soviético e do fim da Guerra Fria, entrou em desabalado desespero. Foi preciso reorientar sua ideologia de modo a ocultar os fracassos. A luta de classes foi sobreposta ao esquema do conflito entre o imperialismo dos Estados Unidos e os povos oprimidos da Ásia, África e América Latina e à globalização. O colapso do socialismo real poderia ter o mesmo efeito para a esquerda que a derrota do nazifascismo teve para a ultradireita. Mas isto não aconteceu. A esquerda, além da sólida base intelectual conferida pelo marxismo, sempre se dividiu em diversas correntes, algumas delas independentes do regime soviético. Lideranças sindicais, a presença nas universidades, a força eleitoral, os cargos na administração pública ocupados por esquerdistas, a chefia de editorias internacionais na mídia, as ONGs humanitárias, todas essas entidades e funções ocupam um significativo número de pessoas e de seus seguidores. A conservação do espaço conquistado depende da credibilidade da ideologia mater, que alimenta a vasta ramificação do "campo progressista". Uma grande causa internacional contribui fortemente para promover a união interna, devolver a convicção perdida e manter a marca do humanismo socialista.

Aí entra a luta contra o sionismo, na qual vale tudo para caracterizar Israel como sendo uma nação racista, que pratica o apartheid contra os árabes que vivem dentro de suas fronteiras, que oprime os árabes palestinos com uma ocupação militar, que, ao longo de sua história, adotou e adota práticas nazistas e chega mesmo a praticar o genocídio contra uma população desamparada.

Os fundamentos desta ideologia são três mitos:

1. O mito de que os judeus compraram ou roubaram a terra dos camponeses árabes durante as décadas que antecederam a Partilha. Entre outros, Joan Peters, no livro “De Tempos imemoriais - A origem do conflito árabe-judeu sobre a Palestina”, de 1984, demonstrou, de forma detalhada e com rigor analítico notável, que se deu o inverso. A ocupação de terras por colonos judeus se deu em terras devolutas, desocupadas. E a população árabe da Palestina quintuplicou em quase cinquenta anos. Isto não se deveu ao crescimento vegetativo, mas a um forte movimento migratório por terra de árabes do Líbano, Síria, Jordânia e Egito, atraídos pela oferta de melhores condições de vida e trabalho decorrentes de implantação de infraestrutura, da revitalização agrícola e industrial provocadas pelo afluxo de judeus. A oposição a este afluxo era conduzida pelos oligarcas árabes locais cujos interesses econômicos colidiam com os da modernização da região levada a cabo pelos judeus.

2. A expulsão da população árabe durante a Guerra de Independência de Israel. Jamais o governo israelense desenvolveu uma política de remoção populacional. O deslocamento dos árabes deveu-se ao medo do que aconteceria a eles na guerra, porque a cultura árabe da região, apregoada pelas lideranças que invadiram o recém-criado estado judeu, era a de exterminar o inimigo. Além disso essas mesmas lideranças estimularam a fuga dos árabes, com a promessa de que eles voltariam e seriam beneficiários dos despojos de guerra. Mais um motivo: os árabes da Palestina acorreram para países com os quais mantinham laços estreitos, inclusive familiares.

3. O mito da ocupação dos territórios depois de 1967. De 1948 até 1967, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza foram ocupadas pela Jordânia e Egito, respectivamente. Tratava-se, neste período, de simplesmente criar um estado árabe independente nestes territórios, sem qualquer consulta a Israel. Isto não só não foi feito como, ao contrário, Jordânia e Egito utilizaram-se destes territórios como bases de infiltração terrorista. O objetivo do mundo árabe e da OLP, criada em 1964, era destruir Israel. Este objetivo somente foi formalmente abandonado pelo Egito em 1979, e pela OLP, em 1993, nos Acordos de Oslo.

Deste mito faz parte a tese atual de que os assentamentos judeus na Cisjordânia – cerca de 400 mil pessoas - impedem a implementação a paz entre israelenses e palestinos. Não é verdade. Em 2000, o então primeiro-ministro de Israel ofereceu a Yasser Arafat 97% da Cisjordânia e o controle sobre Jerusalém Oriental em troca de um tratado de paz. A questão dos assentamentos não obstaculizou as negociações, mas sim a exigência, feita por Arafat, de que os refugiados palestinos nos países árabes retornassem a Israel.

Além disso, os assentamentos formam um cordão de segurança na linha de defesa mais frágil de Israel e, por isso, cumprem um função estratégica. Mais ainda, foram erguidos em terras devolutas, sem que fosse deslocado ou expulso um árabe sequer der suas terras ou moradias. E causaram uma forte transformação econômica na região, que favoreceu os palestinos ampliando a oferta de eletricidade, rede de água, estradas e trabalho. Mais ainda. Os judeus dos assentamentos podem, em um hipotético futuro acordo de paz, permanecer onde estão sob soberania do estado pretendido pelos árabes palestinos. Mas o que se advoga é a sua remoção, o que caracterizaria um processo de limpeza étnica, semelhante ao que ocorreu no mundo árabe da década de 50, quando cerca de 800 mil judeus, do Marrocos ao Yêmen, foram expulsos de seus lares em represália à criação do estado judeu.

Os três mitos constituem a base para todos os ataques que a esquerda lança contra Israel e adquiriram, na grande mídia, o status de estado da arte.

Artigo de Luis Milman, jornalista e filósofo

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