terça-feira, 19 de setembro de 2017

A patética saída de cena de Janot, conforme Reinaldo Azevedo

Janot se acha Hamlet. É… E de como, diz Lula, o doutor teria tomado no cobre se formal fosse

Carta enviada pelo agora ex-procurador-geral é um festival de ignorância, mistificação e demagogia. À sua maneira, a associação com o príncipe porra-louca faz sentido

Por Reinaldo Azevedo


Rodrigo Janot não compareceu à posse de Raquel Dodge. Teria considerado uma descortesia ter sido convidado apenas por e-mail. Bem, tanto ele fez para que ela não chegasse lá que o convite eletrônico já é expressão de uma generosidade da nova titular. Por que não sirvo para ser homem público? Por coisas assim: em lugar de Raquel, nem essa tal mensagem eu teria enviado. E, se querem saber, foi muito bom o doutor ter-se ausentado porque isso o levou a emitir a nota mais patética jamais saída daquela incansável lavra de impropriedades. 

Não fossem as articulações malévolas de Janot para derrubar um presidente da República; não fosse a clara admissão de que faz política — e sua nota reflete isso de maneira berrante e aberrante; não fosse a escolha deliberada pela demagogia politiqueira, e eu seria condescendente com ele, destacando, sim, a sua ignorância, mas sem supor que há algo de podre no quintal de seu cérebro.

Só um misto de ignorância arrogante e populismo vulgar explica que tenha aberto a mensagem a seus pares citando Hamlet, a personagem mais intensamente idiota que Shakespeare construiu — vá lá: ele tenha uma diferença em relação a Janot; o tonto era mesmo sincero nos seus desejos homicidas de Justiça e seu, digamos, solipsismo, seu extremo subjetivismo, derivava do excesso de imaginação, não da falta dela. A síntese de Polônio sobre o príncipe, tantas vezes citada, explica esse estado: “Loucura, sim, mas tem método”. A propósito: coitado do Polônio! Foi um dos homens reais (na peça) que acabaram morrendo porque o jovem porra-louca falava com um espectro.

Tudo o que um procurador-geral da República não pode fazer é ter em Hamlet um herói. Terá o ex-procurador percebido que não há circunstância objetiva que evidencie que Cláudio, seu tio, era mesmo o assassino de seu pai. Terá Janot percebido em algum momento que era o espectro, o fantasma — vale dizer: as projeções mentais do próprio Hamlet, seus rancores, sua impotência para entender o mundo real, seu inconformismo, seu ressentimento — que o levava não só a ser judicioso sobre a morte do pai. O fantasma do próprio também lhe indicava o caminho de uma narrativa que, — a exemplo do que ocorre com boa arte dos alienados — tinha lógica interna.

E é a alguém como Hamlet que Janot pretende se associar, simbolizando, então, o seu amor incansável pela Justiça. Será que Janot assistiu alguma vez a uma representação? Terá tido o cuidado de ler o texto ao menos? Não creio! Na nova denúncia contra Temer, ele não conseguiu acertar nem o nome de um ex-presidente de Furnas, que teria sido condescendente com desmandos do PMDB. O sobrenome do homem é “Conde”, grafado corretamente apenas uma vez, para nada menos do que sete “Conte(s)”.

Então era isto? Então era mesmo um banho sangue o que queria Janot? Ele deve ter se esquecido que, ao fim da tragédia, sobram muitos corpos pelo caminho, inclusive o do próprio, e chega ao fim o reinado dos Hamlet. Como Janot, o maluquete também achava que havia um excesso de “larápios egoístas e escroques ousados” na Dinamarca. Na hipótese de ser verdade, poderia ter seguido as regras do jogo, vencendo-os. Não! O rapazola lá e o coroa aqui preferiram o salseiro, o espalhafato, a intriga, as ações insidiosas. E, não sei, não, tudo indica, se todos falarem o que sabe, mesmo menos esbelto, menos mais velho, mesmo mais sem graça, mesmo mais sem imaginação, Janot também termina varado pela espada — no caso, da lei. Até as pedras sabem que ele está hoje nas mãos de Marcelo Miller, que já pediu o seu testemunho em ação judicial.

Janot não se envergonhou nem mesmo de deixar gravado, em sua última manifestação como procurador-geral, o mais rasgado auto-elogio. Ele está mesmo convencido de que nunca houve um procurador-geral da República como ele. Sobre seu próprio trabalho, considera: “O MPF de 2017 é diferente do MPF de 2013. Mas o norte e os desafios são os mesmos: a luta pelo Direito e pela Justiça, de forma incansável, de olhos abertos e prontidão constante”. Evidenciando que pode ainda não ter desistido de uma candidatura ao governo de Minas, escreve: “O Brasil é nosso! Precisamos acreditar nessa ideia e trabalhar incessantemente para retomar os rumos deste país, colocando-o a serviço de todos os brasileiros, e não apenas da parcela de larápios egoístas e escroques ousados que, infelizmente, ainda ocupam vistosos cargos em nossa República.”

Cumpre perguntar: quem são os proprietários do Brasil por trás desse “nosso”? Quem fez de Janot, que foi indicado procurador-geral por Lula e depois renovado no cargo por Dilma, um representante do povo? Em nome de qual coletividade ele fala?

Mas convenham também: sua carta mixuruca não é muito melhor do que suas denúncias, a não ser num aspecto: em sua mensagem, ele acusa crimes, morais ao menos, sem apontar os autores. Em suas denúncias, costuma apontar os autores, sem deixar claro que crime cometeram.

De resto, Janot é soberbo e deselegante. Lembra ter ficado em primeiro na eleição promovido pela ANPR (Associação Nacional de Procuradores da República). Raquel Dodge, sua sucessora, como se sabe, ficou em segundo. Dizer o quê? Com um pouco de vergonha em sua cara institucional, este senhor nem mesmo citaria tal escrutínio, que é uma usurpação. A eleição nem prevista na Constituição está. De resto, Janot pode se livrar de tudo, mas não de uma fala histórica de Lula, numa conversa com o advogado Sigmaringa Seixas. O chefão petista cobrava então que Sigmaringa fizesse alguma gestão junto ao procurador-geral, que ele julgava estar perseguindo o PT e a ele próprio. O interlocutor diz ao ex-presidente que não pode abordar Janot na forma sugerida; seria preciso ser mais formal. E Lula fala, então, para a história, sem saber que estava sendo gravado — conversa que Sérgio Moro tornou pública:

“Esse cara, se fosse formal, não seria procurador-geral da República; teria tomado no cu; teria ficado em terceiro lugar (…). Quando eles precisam, não tem formalidade; quando a gente precisa; é cheio de formalidade”. Para ouvir, clique aqui.


Havia, sem dúvida, algo de podre na Dinamarca do nosso Hamlet de cabelos encanecidos.

Leia aqui a incrível, patética, carta de Janot aos seus colegas.  

“Colegas servidores e servidoras,
‘Há algo de podre no Reino da Dinamarca’ é uma das frases célebres em Hamlet. Segundo Amanda Mabillard, profunda conhecedora da obra de Shakespeare, a Dinamarca apodrecia com a corrupção moral e política. Poderia ser o Brasil deste século.
Há duzentos anos, os dragões da Independência, que formam o 1º Regimento de Cavalaria de Guardas, são protetores de símbolos e princípios. São sentinelas da democracia. Foi um alferes deste regimento que entregou ao Marechal Deodoro o cavalo baio 6, que ele montava ao extinguir o Império e proclamar a República. Os dragões guarnecem as instalações da Presidência da República e não podem descansar durante sua guarda.
O Ministério Público tampouco pode esmorecer, enquanto a Constituição lhe cobra serviço; é também um guardião da República.
Este 17 de setembro marca o fim de uma sentinela de quatro anos. Hoje encerra-se oficialmente meu mandato à frente da Procuradoria-Geral da República. Tenho pouco a acrescentar a tudo que já foi dito ao longo dessa jornada.
Estivemos todos alertas, pelo Brasil, por suas leis e por sua Constituição. Ao fim desses dois mandatos que me foram outorgados pelos meus pares, entrego-lhes um Ministério Público diferente do que o que recebi dos meus antecessores. Trabalhamos intensamente para melhorias.
Temos mais estruturas institucionais, mais membros, mais servidores, mais atribuições, mais prestígio no Brasil e no exterior. Tais avanços estão retratados nos vários relatórios de gestão publicados pelas diversas secretarias e assessorias da PGR nos últimos dias.
Resta-me tão-somente agradecer a todos vocês que, de variadas formas, ajudaram-me a chegar aqui. Os críticos alertaram-me dos perigos e ajudaram-me a desviar do abismo da soberba; os incentivadores lançaram luz na estrada e aplainaram caminhos, tornando a jornada mais leve e suave.
Foram quatro anos intensos. Abracei o projeto de chefiar essa instituição não pelo simples propósito de coroar minha carreira de 33 anos como membro do Ministério Público, mas principalmente pela certeza de que poderia e deveria colocar minha experiência a serviço do País. Construí, com um grupo de colegas, o projeto que foi submetido, em 2013, ao crivo da lista tríplice. Os membros do MPF confiaram em mim e nas ideias de inovação que minhas propostas representavam. Fui então o primeiro da lista tríplice.
Hoje, olhando para trás, percebo o quanto mudamos nesses quatro anos de caminhada. Eu mesmo quase não me reconheço. Cheguei carregado de certezas e saio imerso em dúvidas. Estou certo apenas de que dei o melhor de mim, chegando muito além de onde achava que minhas forças permitiriam. Nas minhas decisões, nunca levei em conta conveniências pessoais ou conforto transitório. Devo ter errado mais do que imagino, mas de uma coisa me orgulho profundamente: nunca falhei por omissão, por covardia ou por acomodação. Fiz o que me pareceu certo fazer. A história dirá a medida desses acertos e erros no tempo próprio.
Espero que a semente plantada germine, frutifique e que esse trabalho coletivo de combate à corrupção sirva como inspiração para a atual e futuras gerações de brasileiros honrados e honestos. O Brasil é nosso! Precisamos acreditar nessa ideia e trabalhar incessantemente para retomar os rumos deste país, colocando-o a serviço de todos os brasileiros, e não apenas da parcela de larápios egoístas e escroques ousados que, infelizmente, ainda ocupam vistosos cargos em nossa República.
Agradeço profundamente a todos os membros e servidores de minha equipe, que ofereceram meses e anos de suas vidas, às vezes com sacrifícios pessoais e financeiros, para dedicar-se a uma penosa missão republicana. Todos vocês, meus colegas, fizeram menos pesado o meu fardo. A solidão da cadeira de PGR foi menor graças à dedicação de tantas pessoas que seria impossível nominar, entre servidores da casa e contratados, terceirizados, estagiários, membros da ativa e aposentados, deste ministério público e de outros ramos.
Meu tributo de infinita gratidão a todos vocês. Hoje eu passo – como de resto todos nós passaremos –, mas o Ministério Público deve seguir altaneiro e intimorato singrando mares tormentosos, em todo o país, meus colegas, sem nunca perder a esperança e a proa do seu destino. Sinto que ainda estamos longe do nosso ideal, mas tenho convicção de que deixo o leme dessa nave em ponto mais próximo do porto seguro do que quando o assumi há um quadriênio.
O MPF de 2017 é diferente do MPF de 2013. Mas o norte e os desafios são os mesmos: a luta pelo Direito e pela Justiça, de forma incansável, de olhos abertos e prontidão constante. Por motivos protocolares, não poderei transmitir o cargo a minha sucessora, mas desejo-lhe sorte e sobretudo energia para os anos que virão. Que a nova PGR encontre alegria mesmo diante das adversidades e que seja firme frente aos desafios. De meu ofício de Subprocurador-Geral perante o STJ estarei torcendo pelo sucesso da gestão 2017-2019, pois o êxito da colega Raquel Dodge será a vitória de todos nós.
De meu posto, ainda como sentinela, seguirei a promover a agenda anticorrupção. Este não foi o mote do meu mandato. É mote do meu país.
Forte abraço!”  

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