quarta-feira, 2 de abril de 2014

AINDA A VIOLÊNCIA NA FACULDADE DE DIREITO DA USP E A TOLERÂNCIA. OU: A SABEDORIA QUE VEM DA GUILHOTINA, DO PAREDÃO E DO FUZILAMENTO

O que está foto tem a ver com este texto? Ficará claro.

 Noite histórica -  O jurista Goffredo da Silva Telles Jr. lê a Carta aos Brasileiros, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em que desafia a ditadura militar com o elogio ao estado de direito (foto: Pedro Martinelli)
Noite histórica - O jurista Goffredo da Silva Telles Jr. lê a Carta aos Brasileiros, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em que desafia a ditadura militar com o elogio ao estado de direito (foto: Pedro Martinelli)
Sim, eu vou voltar ao caso do ataque fascistoide de que foi vítima o professor de direito administrativo Eduardo Lobo Botelho Gualazzi na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. E acho, sinceramente, uma covardia inominável que alguns sugiram que eu leia o texto que ele escreveu, como se eventuais abominações lá presentes justificassem o ato covarde. É provável, dados os fragmentos que me chegaram, que eu discorde de absolutamente tudo. E daí? (segue de novo o vídeo)
Os interessados devem ler o que pensa, por exemplo, o professor Walter William, 78 completados neste 31 de março, que concedeu uma entrevista à VEJA em 2011. Sobre a liberdade de expressão, ele afirma: “É fácil defendê-la quando as pessoas estão dizendo coisas que julgamos positivas e sensatas, mas nosso compromisso com a liberdade de expressão só é realmente posto à prova quando diante de pessoas que dizem coisas que consideramos absolutamente repulsivas”.
William é um intelectual negro, ultraliberal — refiro-me ao liberalismo econômico —, que desafia os cânones do pensamento politicamente correto. Mas não o evoco por isso, não. O fato de ele ser negro não torna seu pensamento nem mais nem menos abalizado. É que sua síntese é muito boa. Se o outro diz aquilo com o que concordamos, por óbvio, nossa tolerância não está sendo provocada. De resto, até onde sei, Gualazzi não estava a defender a tortura — e não venham me dizer que “é tudo a mesma coisa” porque, obviamente, não é.
Se abomino e lastimo a brutalidade, não é menos verdade que a compreendo. Com raras exceções, a imprensa exerceu um papel lamentável nestes dias, dando corda a mistificadores. Que nenhum cretino venha tentar me provar que o golpe não era bacana — sei disso mais do que os radicais do Toddy & Sucrilho. Sei disso desde quando se opor ao regime era realmente perigoso. Hoje, o máximo de risco que essa gente corre é uma tia gostar do vídeo no Youtube.
Leio, ouço e vejo muita coisa por aí. A impressão que se tem é que havia no Brasil um presidente muito bom, corajoso e valente, que amava o povo. Aí chegaram os homens maus, financiados pelos Estados Unidos, e decidiram acabar com o reino da Justiça. Essa é também a história que é contada para essa garotada nas escolas. Essa é a mística criada pela tal Comissão Nacional da Verdade. Em 2014, passados 50 anos do golpe de 1964, entendemos menos hoje o que realmente aconteceu do que antes. Menos hoje do que há dez anos. Menos hoje do que há 20 anos.
E por que é assim? Porque estamos expostos ao peso de uma nova história oficial. No que concerne ao valor da narrativa, ela é ainda mais perniciosa do que todas as mentiras contadas pelo oficialismo golpista porque reivindica para si a condição de a “a história verdadeira”, que não estaria submetida a viés nenhum, a não ser o apego aos fatos. E, nesse caso, até contumazes assassinos como Marighella e Lamarca viram heróis. Afinal, eles só matavam e praticavam atentados terroristas por bons motivos, né? “Ah, mas defender o golpe é o mesmo que apoiar a tortura!” São futuros advogados a dizê-lo? Não é, não! Ou esses que invadiram a sala acham que um policial feito refém por um líder de esquerda, com as mãos amarradas, impossibilitado de fugir, deve mesmo ser morto a coronhadas de fuzil, até seu crânio e seu cérebro se misturarem numa passa pastosa? Foi o que Lamarca fez — na verdade, Yoshitani Fujimori, sob as suas ordens — com o tenente da Policia Militar de São Paulo Alberto Mendes Júnior, de 23 anos,  Quando Dilma falou das vítimas, em seu discurso do dia 31, estou certo que pensou, entre outros, em Lamarca, de quem chegou a ser subordinada, mas não no tenente Mendes Júnior.
Como esquecer, santo Deus!, que estamos numa universidade? Como esquecer que, no espaço acadêmico, mormente num curso de direito, a divergência, por mais abominável que seja a tese, é o sal da vida? Mais constrangedor ainda é ver o passado a serviço da ignorância. Assistam ao vídeo de novo. Os alunos invadem a sala de aula cantando um trecho da música “Opinião”, de Zé Ketti, que assumiu um sentido muito particular durante a ditadura:Podem me prender, podem me bater,/
podem até deixar-me sem comer/
que eu não mudo de opinião.
daqui do morro eu não saio não,/
daqui do morro eu não saio não.
Os dois últimos versos, dada uma reserva de ridículo, não foram entoados. Não havia por ali, digamos, “gente do morro”… Ora, quem vai bater nesses malcriados? Que vai prendê-los, quem vai deixá-los sem o seu Toddynho com sucrilho? Felizmente, os que comandaram a resistência pacífica ao golpe construíram os fundamentos de um regime que permite que todas as correntes de opinião se manifestem.
Honestidade intelectual
Qualquer pessoa intelectualmente honesta — sim, é uma questão de honestidade — há de reconhecer que isso só é possível porque as esquerdas radicais perderam a batalha.  Onde quer que tenham vencido, os mortos se contarem aos muitos milhares, aos muitos milhões. Isso é apenas um fato. A Venezuela de hoje serve de ilustração patética do que afirmo aqui.
Qual será a próxima vítima dos agressores? Qual será o próximo professor a ser submetido ao Tribunal da Verdade, que terá a sua palavra tolhida, que será humilhado? A partir de agora, a São Francisco tem um comitê de censura. E, para pôr os pés naquela facultade, será preciso pedir autorização aos donos do pedaço. A São Francisco, em breve, será um território menos livre do que o Complexo do Alemão. É isto: a São Francisco é agora o Complexo da Ideologia Alemã… Quem dera!  Nesse caso, haveria ao menos alguma leitura… Logo será preciso uma UPPI — Unidade de Polícia Pacificadora Ideológica — para que que alguém tenha ao menos o direito de erguer a mão e fazer uma objeção sem ser ameaçado por um bumbo…
Goffredo da Silva Telles Jr.Sinto muita vergonha ao ver essas coisas e lembrar que a São Francisco é a casa de um Goffredo da Silva Telles Jr., o ex-integralista — vejam só: ele tinha sido “de direita”! — que , em 1977, proclamou das Arcadas a “Carta aos Brasileiros” (foto no alto). E lá se podia ler:“Reconhecemos que o Chefe do Governo é o mais alto funcionário nos quadros administrativos da Nação. Mas negamos que ele seja o mais alto Poder de um País. Acima dele, reina o Poder de uma Ideia: reina o Poder das convicções que inspiram as linhas mestras da Política nacional. Reina o senso grave da Ordem, que se acha definido na Constituição.
(…)
Proclamamos que o Estado legítimo é o Estado de Direito, e que o Estado de Direito é o Estado Constitucional. O Estado de Direito é o Estado que se submete ao princípio de que Governos e governantes devem obediência à Constituição”.
Este era o Goffredo que teve um primo assassinado, nas cercanias da faculdade, pelas forças de Getúlio, em 1943, que enfrentaram a tiros uma passeata dos estudantes da São Francisco.
Sim, eram tempos em que se podia bater, prender e matar para que alguém mudasse de opinião. Hoje não! Os que lutaram para construir a democracia no Brasil o fizeram para garantir a todos o direito de voz — e é só a voz dos que discordam de nós que testa a nossa tolerância.
Querem transformar a São Francisco num gueto, onde só se entra com atestado de bons antecedentes ideológicos? Será fornecido por quem? Quando é que esses rapazes e moças vão se reunir para definir um “código de ética” que estabeleça quem tem e quem não tem direito a advogado?
Escreveu-se um capítulo vergonhoso da história da São Francisco. Mais vergonhoso ainda é o silêncio que se seguiu à violência. Não se trata, insista-se, de concordar com o professor ou de discordar dele, mas de reconhecer a universidade segundo a sua vocação: o espaço da universalidade, da divergência, do dissenso. Ou então que se faça o Index das opiniões e dos temas proibidos.
Gene antigo
É claro que esses radicais do bumbo violam fundamentos da democracia que não construíram, mas que herdaram. Apontei no texto de ontem o rebaixamento do próprio pensamento da esquerda, cuja militância é hoje, em regra, de uma assombrosa ignorância de seus próprios textos de referência. Mas, de todo modo, o velho gene da intolerância está ali presente, sempre pronto a calar, a banir, a excluir, a higienizar a diferença.
São assim desde o Clube dos Jacobinos, não é? E continuarão. Quando já não têm mais inimigos a eliminar, então se voltam contra os aliados. A marca registrada dos regimes vitoriosos de esquerda, afinal, é engolir os próximos revolucionários, a exemplo de Saturno, que engolia os próprios filhos, como no quadro de Goya, que vocês veem cima. Mesmo quando a luta “pelo novo homem” seduzia os intelectuais de renome — e se distinguia um tanto do crime organizado —, a esquerda sempre banhou seus aliados em sangue, depois, é óbvio, de eliminar os adversários. A matriz — a política — do marxismo é a Revolução Francesa, notória por devorar os seus. Stálin transformou isso numa indústria (i)moral, com os Processos de Moscou.
saturno goya
O mal essencial desse pensamento, em 1964 ou agora, está na recusa em reconhecer que ainda não se inventou nada melhor para equacionar as divergências em sociedade do que a democracia, o regime de liberdades. Antes, as esquerdas tinham o que parecia ser um projeto totalizante para a civilização. Naufragaram. Onde a estupidez persiste e, eventualmente, dá as cartas, ou elas se dedicam à empulhação violenta à moda chavista ou se esforçam, a exemplo do lulo-petismo, para submeter as instituições a uma espécie de gerência, buscando substitui-las pelas instâncias do “partido”.
De resto, lá estava o professor, a ler a sua tese sem seguidores. Menos do que minoritário, é provável que estivesse solitário. E, mesmo assim, foi esmagado pelo ato boçal. Posso imaginar do que  seriam capazes essas pessoas se achassem que o adversário oferece, de fato, algum risco. A resposta é simples: fariam o que fizeram nos últimos duzentos e poucos anos: guilhotina, paredão, fuzilamento.
Mas devemos acreditar que só o fazem porque, afinal, são favoráveis à Justiça, à Igualdade, à Liberdade e à Verdade. Por Reinaldo Azevedo

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