segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A CAETANO VELOSO: "COMIGO NÃO, VIOLÃO!". OU: O MUNDO ALÉM DO UMBIGO TROPICAL

Disse que voltaria a Caetano Veloso e volto. Com um pouquinho de preguiça porque há assuntos mais urgentes e importantes. Afirmei que trataria da questão ontem à noite, mas o ataque racista praticado por hostes petistas contra Joaquim Barbosa e a conversão de doutor Ives Gandra entraram na frente. Lá vamos nós. O cantor volta a citar o meu nome — três vezes num parágrafo — em sua coluna no Globo de domingo. Um terço do texto se destina a responder a um post que escrevi aqui e que remete a Paulo Francis. Qual o busílis? Caetano entrevistou Mick Jagger em 1983. Francis escreveu um artigo sobre a entrevista. Basicamente, leia a íntegra quem não conhece, aponta o servilismo de Caetano ao astro pop. E até faz uma ressalva: o entrevistador, como artista, era melhor do que o entrevistado. Caetano não gostou e chamou o jornalista de “bicha amarga” e “boneca travada”. Neste domingo, tenta se explicar assim:

(…)
Cito Francis, não apesar de ele ter escrito contra mim. Ele estava mentindo e por isso reagi duro, mas a parte negativa da caracterização não era “bicha”: era “travada”, e com isso expliquei que eu é que fora insultado e respondia com crítica cultural. A parte quente do texto dele era sobre eu propagar ideias de amor sem limite. Mas isso era só um aceno aos esquerdistas que ele estava por abandonar.
Retomo
Se é de mentira que se trata, infelizmente, quem mente é Caetano. Acima, vai o link para texto que Francis escreveu. É um despudor afirmar que a “parte quente” estava relacionada a questões comportamentais que Caetano eventualmente evocasse. De resto, no caso daquele artigo, nem se trata de lidar com critérios que remetam a “verdade” ou “mentira”. Era um artigo de opinião. É justo não gostar de uma crítica e rebatê-la. A questão está no modo. O que Caetano encontrou mais à mão foi pespegar no outro a pecha de “bicha amarga” e “boneca travada”.
Agora ele se explica: a “parte negativa da caracterização” estava no “travada”, não no “bicha”. Ah, bom! É isso mesmo, Caetano? Estivéssemos num tribunal, eu lhe daria tempo para rever a besteira. Como não estamos, sou obrigado a desconstruí-la.
1: na hipótese de que Francis fosse bicha, o que é falso, estaria obrigado a ser “destravada”?;
2: isso deve nos levar a concluir que um hétero é livre para expressar como quiser a sua sexualidade, mas uma “bicha” só pode fazê-lo de modo “destravado”?;
3: assim, deve-se concluir que uma “bicha” está obrigada a um decoro específico, ou, então, Caetano a denuncia?;
4: digamos que Francis fosse “bicha” e “travada”, por que seria essa a motivação de sua crítica, não outra qualquer?;
5: quando alguém é “bicha amarga” e “boneca travada”, não se deve mais prestar atenção a qualquer juízo que emita, porque essa condição, então, se sobrepõe às demais?;
6: deve-se supor que Caetano até tolere as “bichas”, desde que elas sejam “destravadas”?;
7: em que a evidente manifestação de preconceito, ora reafirmada, se distingue da tal homofobia?;
8: ora vejam: eu sou contra o PLC 122, que agride a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. Caetano, estou certo, é a favor. Eu jamais apelaria à condição sexual de quem quer que fosse, falsa ou verdadeira, para combater um argumento. Caetano, no entanto, fez isso e agora reafirma a validade do seu critério. Ele nada tem contra as “bichas”, claro! — a não ser que sejam “travadas”;
9: crítica cultural foi a que Francis fez. O texto pode ser lido. Caetano só procurou uma maneira de ofender o outro. Trinta anos depois, não tem o bom senso e a humildade de se desculpar.
Embora ele tente fazer de conta que me lê, assim, de vez em quando, quando alguém lhe manda um link, o fato é que um terço do seu artigo busca responder ao post que escrevi. Sem qualquer arrogância, juro!, eu o julgava melhor. Embora o seu estilo de argumentação — o cogitus interruptus — me incomode um pouco, tenho-o na conta de um homem inteligente. O que vai acima está a me convidar a rever essa minha consideração.
Embora obcecado pela novidade, descubro, de forma um tanto surpreendente, um senhor de 71 anos preso numa bolha de ilusões do passado. Escreve ele (em vermelho):
Fui seu fã [de Francis] na adolescência. Mas descobri por mim mesmo, antes dele, a força dos argumentos liberais contra o terror que o comunismo urdia. Nem li Aron contra Sartre (só li Sartre): bastaram-me três ou quatro palavras ditas como comentário cético por Artur Guimarães aos discursos de Mautner em Londres 71. A combinação de tais discursos, que uniam Jovem Guarda e Guarda Vermelha, com o riso de Artur (“Não acredito em sociedade de um livro só”) me fez pensar três vezes. O nietzschianismo de esquerda de Mautner era acompanhado pela frase curta de Artur: “Sou cristão”. Eles foram colegas de escola. Cicero tinha chegado e ainda era um tanto althusseriano: todo mundo buscava ter coragem de olhar o mundo de frente.
Retomo
Caetano tem certa tendência a contar a história da humanidade a partir do seu umbigo, a confundir sua comédia pessoal com a história universal, como escreveu certo senhor. É um risco que todos corremos, eu sei. Nele, o sestro é bastante pronunciado. Comecei a ler “Verdade Tropical” e parei não por causa do estilo “tudo ao mesmo tempo agora”, mas dessa “ego trip” meio despropositada. A se dar crédito ao que vai acima, todos os confrontos ideológicos do fim dos 60 e início dos 70 estavam emblematicamente representados num quartinho de Londres. De resto, nunca houve um “Aron contra Sartre”. Ou é já uma leitura ideológica ou é falha de formação cultural — não seria se ele não escrevesse a respeito; como escreve… Raymond Aron tinha — teve — uma apreensão autônoma daqueles dias, que não era mera expressão reativa. Sugiro a Caetano que leia as suas memórias. Quando as escreveu, Aron era um pouco mais velho do que o arrogante Sartre de “As Palavras”. E escandalosamente mais humilde.
O segundo dos três parágrafos do texto de Caetano é o samba-pseudoacadêmico-do-baiano-doido. Há ali um esforço para demonstrar uma profunda cultura filosófica que vai misturando alhos com bugalhos, numa apreensão de tal sorte pessoal do mundo do pensamento que se trata, sei lá como chamar, de um “ideoleto filosófico”. Escreve (em vermelho):
Olavo [de Carvalho] fala como se toda a academia fosse negação iluminista da Idade Média e mitificação da Renascença. Mangabeira não tem nada disso. Desembaraça-se de modo original e rigoroso, diferençando sua própria interpretação da Era Axial da que serviu a Jaspers para reafirmar as Luzes.
Sabem o que isso quer dizer? Nada! Afirmar que Olavo de Carvalho se opõe à “toda a academia” como esta fosse negação iluminista da Idade Média é, com todo respeito, uma boçalidade. Até porque “toda a academia” não é uma categoria de pensamento, não é um grupo nem é um prédio que abrigue pensadores. Vi no site de Caetano que ele está com show novo. No tempo em que parei de ouvi-lo, uns 15 anos já, cantava muito bem. Espero que continue.
O terceiro parágrafo de Caetano cita meu nome três vezes. Reproduzo trecho:
Se chego até a pôr o nome de Azevedo neste espaço (…), é porque respeito o credo liberal (Mangabeira ama Mills). Também tenho olhado mais esses da direita (mas é pouco: dois posts do Azevedo que me mandaram por e-mail: não busco nada, já notaram?, tudo me cai nas mãos, como a maravilhosa camisa preta dos BBs). (…)
Retomo
Chega “até” a citar por quê? Acha que é alguma concessão que me faz? Imagina que possam me dar visibilidade ou me admitir no mundo dos vivos quando se refere a mim? Mais Caetano entra em pauta quando a ele me refiro do que o contrário. Isso até pode ser a evidência de que o mundo está mesmo de ponta-cabeça, mas assim são as coisas.
“Esses da direita” uma ova! Eu não tenho medo das palavras, nunca tive — e acho que a satanização da palavra “direita” está na raiz de boa parte dos desatinos por que passa o Brasil, um país em que todos os bananas se dizem de centro-esquerda: tanto os bananas da situação como os bananas da oposição. Na justificação do mensalão e na defesa que se faz dos mensaleiros, está a farsa moral de que se tratava, no fim das contas, de uma luta contra “a direita”.
Se Caetano quer me colocar entre “esses da direita”, tem de dizer o que torna “de direita” o meu pensamento; se distingue “direita” de “liberais”, tem de demonstrar o que diferencia uma coisa de outra.
O que me leva para “a direita”? Combater, por exemplo, com igual energia tanto a pena de morte como o aborto, porque elevo a preservação da vida humana à condição de princípio? Ou, sei lá, defender a privatização da Petrobras? Sou de direita porque afirmo que as esquerdas privatizaram o estado ou porque entendo que descriminação de drogas não é questão de gosto individual, mas de política pública que envolve saúde e segurança? Sou de direita porque quero reduzir o tamanho do estado ou porque não condescendo com a glamorização da miséria e da violência sob o pretexto de abrigar a chamada “cultura popular”? Sou “de direita” porque combato a política de cotas raciais ou porque acuso as esquerdas de terem privatizado até o direito ao preconceito, já que elas podem ser racistas (vide caso Joaquim Barbosa) e eventualmente homofóbicas (desde, claro!, que seja por uma boa causa)?
Caetano não venha tentar exercitar comigo essa manemolência da intolerância — “Ah, falei por falar; só porque me enviaram o link”. Como escrevia Paulo Francis, repetindo canção antiga, “comigo não, violão”. Por Reinaldo Azevedo

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