sábado, 6 de julho de 2013

NÃO PODE HAVER DEMOCRACIA NA PRÁTICA SE NÃO HÁ VALORES DEMOCRÁTICOS

Tendo a achar que, de um lado e de outro, há muita gente que não entendeu direito o que escrevi sobre o Egito. Eu, e isso me pareceu óbvio, não aplaudi o golpe do estado havido no país — e notem que, em nenhum momento, hesitei em chamar a coisa pelo nome que ela tem. A diferença em relação a alguns tantos é que chamei de golpe também a deposição de Hosni Mubarak. Golpes são atos de força desferidos contra a ordem legal. Tento de novo: eu não estou chamando os militares de “libertadores”, de “amigos do povo”. Parece-me que quem anda a fazer isso são as forças não islâmicas, que viram a Irmandade Muçulmana solapar a agenda — ainda que minoritária no país — democrática. Eu não acho, é evidente, que pessoas treinadas para a guerra e para lidar com tanques e armas sejam as mais aptas a cuidar da política, por mais humanistas que possam ser suas convicções. Militares são treinados — e é correto que assim seja — para não perder. E, em política, perde-se e ganha-se. Homem armados, se desafiados num confronto, vêem o outro como inimigo. E isso também é correto. Por essa razão, soldados não devem ser, enquanto soldados, governantes. Algo similar digo sobre os religiosos. Suas prefigurações não são deste mundo, e a razão última de seus atos não se explica segundo a lógica convencional e o mundo de causas e efeitos. Por mais mansa e lhana que seja uma religião — e esse não é exatamente o caso do islamismo —, transformar assuntos de estado em instrumento de reafirmação de uma ordem divina termina, fatalmente, em ditadura. Isso não quer dizer que religiosos não devam se manifestar na sociedade, a exemplo do que sugerem alguns tolos no Brasil. Podem e devem se organizar. Podem e devem dizer o que acham. Quando assisto, por aqui, a manifestações hostis a católicos e evangélicos porque expõem seus valores, porque os defendem, inclusive do Parlamento, só me resta atribuir tal hostilidade à intolerância, à estupidez. Os cristãos têm o direito de disputar adesões numa sociedade pluralista. Mas vocês nunca me viram aqui a defender que pastores e bispos governem o Brasil. Eis o busílis. O cristianismo, nos dias de hoje, qualquer que seja a sua vertente, contenta-se em não ser estado — ainda que, por intermédio de associações, ONGs, pastorais etc., interfiram em assuntos laicos, mundanos. Isso é próprio da democracia. A pergunta óbvia, com resposta não menos, é a seguinte: o Islã se contenta com o poder apenas espiritual? O Islã se contenta com a possibilidade de defender, sim, seus valores; de conquistar mais e mais adesões, mas tolerando que o “outro” possa rejeitá-los? Pois é… É claro, leitor, que, visitados os “livros” do cristianismo, lá também se encontrarão atos e disposições que seriam hoje incompatíveis com a ordem democrática. Mas quantas são as vertentes do cristianismo que as aplicam de verdade? São elas as correntes dominantes? A resposta é dada pelos fatos. Não há uma só — nem mesmo a exceção a confirmar a regra — ditadura no mundo que se possa dizer cristã ou que justifique atos violentos, discriminações e imposições em nome dessa fé. Assim como se podem encontrar disposições incompatíveis com a democracia no cristianismo, há no islamismo recomendações do mais límpido humanismo. De novo, trata-se de saber quem dá as cartas e quais valores são realmente os influentes e determinam as escolhas. O meu texto sobre o Egito valeu mais como um lamento. O que fiz lá, basta revisitá-lo, foi apontar um paradoxo: numa eleição democrática e livre, vencerão partidos islâmicos que fatalmente acabarão por solapar os fundamentos democráticos que os elegeram, de sorte que a democracia vira um instrumento contra a… ordem democrática. Para impedi-los de levar adiante seu intento, é preciso apelar a intervenções não democráticas, que, por seu turno, nunca são meramente instrumentais. Como resolver? Eu tenho a resposta — e ela é óbvia. Mas ela não é simples. No fim das contas, ela é impraticável. Então resposta não é. E qual é? Ora, para que se conciliem democracia e islamismo, é preciso que essa religião, nas suas mais variadas (e são muitas!!!) vertentes, abra mão de ser estado; é preciso que essa religião desista de ser poder; é preciso que essa religião renuncie à prerrogativa que julga ter da “última palavra”. Isso é possível? Vejam lá o Irã xiita, que alguns tolos insistem em chamar de “democracia”. O poder está com o conselho dos aiatolás. O país elege um presidente, mas tem um “líder supremo”. Os religiosos fazem uma triagem para decidir quem pode e quem não pode disputar eleições. No Egito sunita, os militares já deixaram claro, se e quando houver uma nova Constituição, ela será submetida ao líder máximo dessa corrente no país. A análise que sempre rejeitei — e me parece que estava certo — sobre a tal “Primavera” é a de que os países árabes haviam, finalmente, acordado para os valores da democracia. Nunca me pareceu. É claro que existem aos milhares os defensores da ordem democrática, mas são uma minoria — infelizmente. A Irmandade Muçulmana foi para as ruas no Egito. Exige a volta de Mohamed Morsi. Há mais mortos. Já houve atentado terrorista no Sinai, com a morte de um soldado. O Exército tem condições de segurar a pancadaria. A questão é saber a que custo. Numa eventual volta à normalidade, que salvaguarda há de haver na Constituição que impeça a Irmandade Muçulmana de tentar pôr em prática aquele que é, afinal, o seu intento, a razão por que existe originalmente, a saber: um Egito governado segundo as leis islâmicas? Por Reinaldo Azevedo

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