quinta-feira, 4 de abril de 2013

Gays estão sendo usados como massa de manobra para projeto que busca solapar a democracia representativa; esta é apenas uma etapa da “luta”; no fim do túnel, está o “controle da mídia”


Do jornalista Reinaldo Azevedo - Se o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) renunciar à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara ou se for destituído por um golpe, como querem alguns, as comissões do Congresso, doravante, ficarão à mercê dos grupos que conseguirem fazer mais barulho. E o objetivo é mesmo esse. É só de se lamentar que um partido como o PPS esteja fazendo o jogo do golpismo militante e não perceba o que está em curso. De certo modo, isso explica a pobreza do debate político no Brasil e a penúria em que vive a oposição: política, intelectual e ideológica. Tenho insistido aqui, desde que começou essa pantomima, que as declarações de Feliciano — nem homofóbicas nem racistas, apenas infelizes — estão sendo usadas como mero pretexto para que “a luta” das esquerdas contra a democracia representativa alcance um novo patamar, passe para um novo estágio. Não! Nem elas estão conspirando nas sombras nem eu estou desenvolvendo uma teoria da conspiração para capturar o momento. A ação é clara, explícita e já conta até com uma confissão, como se verá adiante. O mais inocente nessa narrativa bufa, se querem saber, é o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), uma celebridade mais ou menos articulada, que descobriu as vantagens, desde o BBB, de ser um gay profissional, uma vítima triunfante, ora convertida em deputado temático. Viu um mar de votos e resolveu se jogar de cabeça. É inteligente o suficiente para perceber que o espírito do tempo lhe é favorável. Mas lhe faltam profundidade teórica e formação política para entender que também ele está sendo instrumentalizado. Neste exato momento, a causa dos gays é usada como instrumento para tentar solapar a democracia representativa. Wyllys, no seu mergulho cego em busca de eleitores, torna-se, assim, uma espécie de inocente útil dos golpistas. É bem verdade que ele próprio, ressalte-se, não é um exemplo de amor à democracia e de tolerância. Basta ler o que escreve, ouvir o que diz e ver como reage quando contraditado — se preciso, tacha um adversário intelectual de bicha velha sem pestanejar, mas não porque seja homofóbico, claro! — para constatar que qualquer que seja o regime ideal que tenha em mente, democrático não é. Nesse particular, está no lugar certo, o PSOL. E nem preciso lembrar que esse partido tem entre seus criadores um terrorista homicida. Wyllys nem devia saber disso direito. Agora que sabe, deve considerar irrelevante. O que está em jogo é coisa bem maior do que ser contra o casamento gay ou a favor — até porque isso é causa vencida. A minoria ganhou. O que está em jogo é bem maior do que saber se Feliciano, filho de mãe negra, foi ou não racista ao mal citar uma passagem bíblica. Até porque não foi. O que está em jogo é a preservação ou o solapamento de regras institucionais. E isso tem um propósito.
Paranoico
Em momentos assim, os adesistas, os preguiçosos e os oportunistas, para evitar o debate — e também porque lhes faltam argumentos —, tendem a tachar de paranoicos os que se atrevem a denunciar a natureza do jogo. Isso vale especialmente para o jornalismo nacional, que faz, nesse particular, com as exceções de rigor, um dos trabalhos mais porcos de sua história. Quando o controle da mídia for a bola da vez — e, cedo ou tarde, será —, então esses estrategistas do arreglo vão se dar conta da besteira que fizeram ao tentar cair nas graças da turba. Terão perdido os aliados de antes sem ganhar aqueles que jamais terão. Farão jornalismo patrulhados pela Polícia dos Bons Costumes Ideológicos… Em muitos aspectos, já é assim hoje. De resto, quem condescende com o ataque à pluralidade e com a agressão institucional se torna alvo potencial dessas práticas. Paranoico? Não! Apenas objetivo.
Um pensador
A estratégia a que me refiro aqui já tem um texto de referência. Seu autor é Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da USP, candidato a sósia de Lênin (não é ironia, não), articulista da Folha e, como direi?, um verdadeiro quebrador de paradigmas. Num artigo publicado na terça-feira, ele não resistiu e entregou o serviço. Safatle é um velho conhecido deste blog. Já escrevi alguns posts sobre o seu pensamento e sua prática política. Refiro-me a seu ineditismo porque se deve a este senhor, até onde sei, a autoria do primeiro texto publicado na grande imprensa brasileira que faz a defesa e a justificativa teórica do terrorismo. O artigo saiu no Estadão no dia 11 de janeiro de 2009. No Estadão!!! No dia 13 daquele mês, comentei aqui as barbaridades que ele escreveu. Não faz tempo, ao defender a legalização do aborto, este pensador refinado chamou os fetos humanos de “parasitas”. Isso quer dizer que ele jamais tomaria uma lombriga por um nascituro, mas que certamente tomaria um nascituro por uma lombriga… Ele não vai muito com a minha cara, e posso compreender os motivos. Naqueles tempos da febre de “occupy” isso e aquilo, Safatle saiu por aí a defender ocupações ilegais, inclusive na USP. Atacou grotescamente a Reitoria da universidade porque pedira na Justiça a reintegração de posse da área invadida. Gostava de ficar filosofando em praça pública contra os interesses dos reacionários e do capital e coisa e tal… Um esquerdista nato! Pois é. Escrevi aqui um post informando que a fazenda de sua família, em Catalão, em Goiás, tinha sido invadida por sem-terra. E o que fez o seu papai? Recorreu à Justiça e à Polícia. E olhem que as terras estavam enroladas com o Banco do Brasil. Alguns ensaiaram um protesto: “Ah, a fazenda era do pai, não dele”. Bem, em primeiro lugar, um dia será. Em segundo lugar, em ritmo de “occupy”, cabia a pergunta: por que não a fazenda do papai? Porque não foi lá defender a permanência dos sem-terra na área invadida? Safatle ficou bravo comigo e escreveu um artigo a respeito. Eu respondi.
Ao texto!
Na terça, o homem que poderia tratar feto humano como Ascaris lumbricoides resolveu deitar suas luzes, em artigo publicado na Folha, sobre os embates que opõem a militância gay ao comando da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Seu artigo segue em negrito, e após meus comentários.
O primeiro embate
O título já é revelador. Safatle está anunciando que se trata de uma guerra de duração mais longa, e que as escaramuças de agora são apenas o “primeiro embate”. Nesse particular, está certo.
Os embates em torno da presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara talvez sejam o primeiro capítulo de um novo eixo na política brasileira.
Aqui ele anuncia “um novo eixo”. Para o autor, a confusão a que se assiste cotidianamente tem um alcance maior do que parece à primeira vista. Faz sentido.
A maneira aguerrida com que o deputado Marco Feliciano e seus correligionários ocupam espaço em uma comissão criada exatamente para nos defender de pessoas como eles mostra a importância que dão para a possibilidade de bloquear os debates a respeito da modernização dos costumes na sociedade brasileira. Pois, tal como seus congêneres norte-americanos, apoiados pelo mesmo círculo de igrejas pentecostais, eles apostam na transformação dos conflitos sobre costumes na pauta política central. Uma aposta assumida como missão.
Pela ordem:
1) é mentira que haja essa “ocupação deliberada de espaço”. PT e PMDB, como primeiro e segundo partidos da Câmara, respectivamente, fazem o que bem entendem e tomam a comissão que lhes der na telha. Preferiram, desta feita, as que lidam, vamos dizer, com mais riquezas. A Comissão de Direitos Humanos foi a que restou para o PSC, um partido da base de apoio de Dilma.
2) Safatle se coloca — “nos” — entre aqueles que seriam defendidos pela comissão? A que minoria ele pertence? Nem mesmo à dos que falam besteira, que isso o faz maioria. Mas notem que, para ele, existe mesmo uma guerra:  de um lado, o “mal”; de outro, o “bem”; de um lado, os que atacam; do outro, os que se defendem. Mas fundamentalista é… Feliciano.
3) Com a devida vênia, só vigaristas intelectuais e tiranos falam em “modernização de costumes”. A Revolução Cultural chinesa, por exemplo, queria “modernizar os costumes tradicionais”, considerados hostis ao comunismo (além de eliminar qualquer desvio burguês, claro). Para Satafle, quem não defende os valores que ele defende não é o “outro”, com direito a ser o “outro”. É alguém atrasado. É por isso que a esquerda matou tanto, e mata ainda, quando no poder. Quem não está com elas é um sabotador do futuro.
4) O “inteliquitual” Safatle conta uma mentira quando diz que há um esforço deliberado do PSC em transformar os costumes numa pauta central e coisa e tal. Trata-se de um bobajol sem sentido. Começa que o partido é pequeno e não tem força pra isso. Nas eleições presidenciais, aliou-se à presidente Dilma Rousseff e teve papel importante para diminuir as resistências que ela enfrentava entre evangélicos. O PT foi buscar o PSC. Quem lê a tolice que escreve fica com a impressão que essa legenda minúscula tem um projeto próprio de poder.
5) A referência encoberta que faz ao Partido Republicano nos EUA é notavelmente falsa, além de ignorante. A religião teve peso pequeno nas duas eleições de Bush e nas duas eleições de Obama. Partidos, não obstante, têm valores também para a área de costumes. Ou não os terão também os democratas? Safatle não deixa de tocar na coisa certa, mas pelo avesso (como de hábito): forças políticas que não estiverem ancoradas também em valores não chegarão a lugar nenhum, como sabem as oposições no Brasil.
Durante os últimos anos, o conservadorismo nacional organizou-se politicamente sob a égide do consórcio PSDB-DEM. Havia, no entanto, um problema de base. O eleitor tucano orgânico é alguém conservador na economia, conservador na política, mas que gosta de se ver como liberal nos costumes. Quando o consórcio tentou absorver a pauta do conservadorismo dos costumes (por meio das campanhas de José Serra), a quantidade de curtos-circuitos foi tão grande que o projeto foi abortado. Mesmo lideranças como FHC se mostraram desconfortáveis nesse cenário.
Também pela ordem:
1) A única verdade contida aí é que os tucanos gostam de se ver como liberais nos costumes. Aliás, em muitos aspectos, mais do que o próprio Lula, que faz a linha família-conservador — ao menos para o consumo dos ingleses, né, Rosemary? Safatle poderia dizer quais são as evidências do conservadorismo tucano em economia e política… Quais são os grandes avanços “progressistas” do PT nessas duas áreas que o PSDB não aprovaria? Ora, os tucanos andam meio sem rumo porque os petistas lhes roubaram a agenda, eis a verdade. O PT se juntou a “conservadores” em economia e política que jamais perfilaram com o PSDB.
2) Afirmar que a campanha de Serra tentou absolver a pauta do conservadorismo de costumes é evidência de desonestidade intelectual. Por que Safatle não aponta os exemplos? Porque não existem. Talvez a campanha de Serra devesse, sim, tê-lo feito para valer, mas não o fez. E, de novo, em 2014, os tucanos não o farão. Associar Serra, talvez o tucano mais à esquerda de quantos há por aí, ao conservadorismo é delinquência intelectual e teórica. Esse cara tem alunos. Deveria respeitar um pouco mais a inteligência da moçada. Mas o professor de filosofia já perdeu faz tempo para o doutrinador. Sim, se os tucanos insistirem na mesma “pauta de costumes” — eu chamo de “valores” — das esquerdas, ficarão onde têm estado nos últimos 10 anos.
Porém ficava claro, desde então, que havia espaço para uma agremiação triplamente conservadora na política brasileira. Ela teria como alicerce os setores mais reacionários das igrejas, com suas bases populares, podendo se aliar aos interesses do agronegócio, contrariados pelo discurso ecológico das “elites liberais”. Tal agremiação irá se formar, cedo ou tarde.
Huuummm… Safatle parece ter nojinho das igrejas e dos “interesses do agronegócio” (e os sem-terra do papai, hein?). Eu até diria que, para os não esquerdistas, a possibilidade de surgir um partido com essas características soaria animadora, mas não está no horizonte. Os parlamentares evangélicos estão nas mais diversas agremiações, incluindo o PT. O mesmo se dá com aqueles ligados à produção agropecuária. Infelizmente, não será assim. Safatle já demonstrou ser um mau pensador. Como historiador, coitado!, falta-lhe uma biblioteca. Essa nova clivagem não acontecerá porque o tamanho que tem o Estado no Brasil não o permite. O governo tem tal força que as convicções mais arraigadas acabam sendo cooptadas. As principais lideranças evangélicas do Congresso pertencem à base de apoio de Dilma. Não fosse a gritaria de Jean Wyllys, com o apoio da imprensa, Feliciano estaria lá cumprindo a pauta do oficialismo.
Nesse sentido, o conflito em torno dos direitos dos homossexuais deixou, há muito, de ser algo de interesse restrito. Ele se tornou a ponta de lança de uma profunda discussão a respeito do modelo de sociedade que queremos.
Huuummm… Quem é esse sujeito oculto, este “nós” do “queremos”? Quem quer o quê? Essa “discussão profunda”, suspeito, supõe ao menos a existência de dois lados. Por que, então, o esforço para banir os evangélicos, para destituir Feliciano, para lhe cassar o mandato? Certo! Safatle está com os que “querem” alguma coisa. Mas e os outros quereres? Eles não contam? Não! Agora vem a melhor pior parte do artigo. Agora vem a confissão.
A luta dos homossexuais por respeito e reconhecimento institucional pleno é, atualmente, o setor mais avançado da defesa por uma sociedade radicalmente igualitária e livre da colonização teológica de suas estruturas sociais. Por isso, ela tem a capacidade de recolocar em cena as clivagens que sempre foram o motor dos embates políticos.
“Colonização teológica de suas estruturas sociais” é uma dessas bobagens pomposas que não querem dizer absolutamente nada, mas que nos fazem suspeitar que aí existe um pensador. Quando foi, senhor Safatle, que as sociedades se organizaram sem a religião, sem “a colonização teológica”? O homem que toma um feto por uma tênia acredita que o pressuposto da “sociedade radicalmente igualitária” é, então, o fim da religião. No reino da liberdade de Safatle, todos são livres para pensar a mesma coisa — é a “igualdade radical”. Ele é Vladimir Safatle, mas até se veste como Vlaldimir Lênin… Notem bem: ele deixa claro que a balbúrdia de agora é parte de uma luta maior e que o objetivo é limpar as “estruturas sociais” da tal “colonização teológica”. Trata-se, ele escancara, de uma luta contra as religiões e os valores religiosos.
A história tem um peculiar jogo por meio do qual ela encarna os processos de transformação global em lutas que, aparentemente, visam apenas a defesa de interesses particulares. Ao exigir respeito e reconhecimento, os homossexuais fazem mais do que defender seus interesses. Eles confrontam a sociedade com seu núcleo duro de desigualdade e exclusão. Por isso, sua luta pode ter um forte poder indutor de transformações globais.
Eis aí. A luta dos homossexuais — na verdade, ele se refere aos militantes do sindicalismo gay; são grupos distintos — é uma espécie de ponta de lança de um movimento, de um jeito de fazer política, que passa pelo assalto ao Congresso. Ela não vale pela coisa em si, mas por aquilo que representa. Se conseguirem tirar Feliciano, um novo marco, sem trocadilho, se terá estabelecido para as demandas no Parlamento. Todas as comissões ficarão sujeitas à mesma abordagem. Um grupo de 20 ou 30 pessoas se imporá pelo berro. Os parlamentares eleitos pelo povo se tornarão reféns de militantes de dois ou três partidos políticos. Cedo ou tarde, chegará a hora de “regulamentar a mídia”. O assunto terá de passar pelo Congresso. Os assaltantes da legalidade e da institucionalidade aparecerão para gritar, espernear, apitar. Falarão, como falam hoje, em nome da liberdade, mas estarão mesmo é fazendo a defesa da censura, que chamam “controle social”. Por que um deputado não pode ter a liberdade de pensar, ainda que coisas erradas, mas a imprensa haveria de ser livre? Ninguém tem mais o direito de se enganar. A confissão está feita.

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