sexta-feira, 12 de abril de 2013

A representação democrática e quem tenta cassar o outro


Em entrevista à VEJA Online, Lelis Washington Marinhos, relator do conselho político da Convenção Geral das Assembleias de Deus, afirmou, segundo informa Lúcia Ritto: “Feliciano não fala em nome da Assembleia de Deus (…) Ele não representa o pensamento da igreja, muito embora a igreja o tenha apoiado nesse episódio por entender que a bancada evangélica não pode ser penalizada”.
Vamos ver. O papa representa uma instituição chamada “Igreja Católica” porque o Trono de Pedro é uno, mas não encarna a representação de cada católico em particular. Uma pequena digressão: na conversa entre o então cardeal Jorge Bergoglio e o rabino Abraham Skorka, que virou livro, de que VEJA publicou alguns trechos, o agora papa Francisco reafirma o fundamento do livre-arbítrio. Se Deus, sempre segundo a visão católica (e, pode-se dizer, cristã), quisesse impedir, de saída, que os homens pecassem, não lhes teria facultado o direito de escolha. Volto ao ponto. O papa representa uma instituição, sim, mas não a expressão necessária da vontade de cada católico ou de milhares deles, eventualmente de milhões. Mas não se concebe, UMA VEZ QUE AS PESSOAS, POR ESCOLHA, DECIDIRAM SER CATÓLICAS, que os que não se sentiram contemplados com a sua eleição interrompam as missas com gritos de “Não me representa”. Tanto menos na Assembleia de Deus, cujas igrejas não estão submetidas a uma mesma ordem administrativa ou a uma mesma e estrita orientação teológica. Marinhos está dizendo o óbvio, que nada tem a ver com o baguncismo autoritário do “não me representa”. Nem Feliciano nem ninguém falam em nome de uma instituição chamada “Assembleia de Deus”. Menos ainda podem falar em nome dos evangélicos. Nesse particular sentido, ele não “representa” todos os evangélicos porque esse tipo de encarnação inexiste até mesmo na Igreja Católica, unificada, ou no processo democrático Assim, que fique claro: Marinhos não é mais um a gritar “não me representa” ou “não nos representa”. Ele está explicitando tão-somente como funcionam as coisas nas igrejas que estão sob a denominação “Assembleia de Deus”. Um dos opositores mais duros a essa campanha bucéfala e autoritária contra Feliciano é o pastor Silas Malafaia, por exemplo, que, não obstante, deixou claro: discorda de Feliciano em muita coisa — logo, Feliciano não o representa como expressão de sua voz. Mas alguém ousaria incluí-lo naquela sequência de fotinhos do Facebook? Ora…
A campanha
Escrevi no dia 8 deste mês um texto demonstrando o que há de essencialmente autoritário na campanha “não me representa” e como ela ignora primados essenciais do processo democrático.
Vamos ver. A democracia é o único regime político que tem por fundamento o repúdio a qualquer forma de discriminação. É tão tolerante que, nas franjas, abriga até os que querem solapar a própria democracia. No Brasil, por exemplo, analfabetos só não podem ser votados porque se supõe, parece-me que com acerto, que poderiam ser vítimas de trapaças envolvendo questões de estado, mas podem votar. 
Nota à margem: em tempos de maniqueísmo nem tão ilustrado, é preciso observar que o fato de o analfabeto não poder ser representante do povo não implica que os que podem não se metam em trapaças. Só que isso não acontece porque são alfabetizados, entendem? Uma coisa é um sistema cercar as margens de erro; outra é tentar construir, a ferro e fogo, um regime infenso ao erro. Termina em ditadura. É como o livre-arbítrio: é preciso deixar que as pessoas escolham — mas é preciso punir as escolhas que a sociedade, democraticamente, considera erradas, assim como as religiões procuram corrigir ou expurgar os comportamentos que tidos por inconvenientes. Podemos e devemos ser livres para escolher. Nossas escolhas podem e dever ter consequências. Mas volto. Ninguém precisa, fazendo uma graça, ler Tocqueville para ser um democrata exemplar, ativa ou passivamente, isto é, para ser um promotor de suas melhores virtudes ou um beneficiário delas. Há certamente democratas viscerais que têm na ponta da língua a “Oração da Maçaneta”, de J. G. de Araújo Jorge, que já traz no nome essa aliteração que apela à Fonte de Hipocrene, escoiceada pelo Pégaso. E há, não duvido, bestas autoritárias que têm na ponta da língua “A Democracia na América” — dirá o opositor, de primeira: “Você, por exemplo, Reinaldo…”. Posso até ser besta, mas não tenho o livro na ponta da língua. Eu tenho a humildade consultá-lo antes de escrever sobre democracia. Notem bem: pode-se ser um democrata exemplar, ativo ou passivo, passando os dias a tomar Chicabon. Para participar, no entanto, do que considero o debate público sobre a democracia e o seu alcance — e agora estamos falando do universo dos conceitos —, aí certas precondições são, sim, necessárias. Quando, dentro do Congresso, numa comissão permanente, um grupo impede o trabalho de deputados eleitos aos gritos de “não me representa”, então estamos diante de duas questões: a) a primeira remete ao funcionamento normal da instituição, que não pode ser palco desse tipo de assédio; b) a segunda é, então, o entendimento que se tem da representação política. No texto que escrevi no dia 8, abordo o caráter tridimensional da representação. Escrevi para o debate. Gostaria muito que me dissessem o que há de errado com ele. Procuro aprender até quando escrevo, não só quando leio. No Parlamento, um deputado ou senador representam, em primeiro lugar, aqueles que neles votaram. Mas essa, escrevi, ainda é a dimensão que chamei “mais pobre” da representação. Há uma segunda, mais ampla: representam também um conjunto de valores que, ainda que não tenham sido convertidos em votos naqueles parlamentares em particular, estão em trânsito na sociedade. Tome-se o caso de Jean Wyllys (PSOL-RJ): é representante dos 13 mil que votaram nele, mas é inegável que se fez, hoje em dia, expressão da vontade e do entendimento de um grupo muito maior. O mesmo se diga de Feliciano. A imprensa fez campanha volitiva em favor de um e involuntária em favor de outro. E há a dimensão terceira do processo representativo, que diz respeito ao próprio Poder. Um deputado ou senador representam quem os elegeu, representam um eixo de valores e representam uma instituição, que não pode ser assaltada, atenção!, nem pelo tal eixo de valores (a dimensão segunda) nem por eleitores em particular (a dimensão primeira). Caso isso seja permitido, não é a representação do deputado Jean Wyllys ou do deputado Feliano que correm risco ou mesmo o conjunto de valores de cada um, mas o próprio processo democrático. Eu estou pouco me lixando para o conteúdo das falas de Feliciano ou de Jean Wyllys. Nenhum dele ME representa; nenhum deles representa, sozinho, o Legislativo. Juntos, eles são representantes desse Poder, de um conjunto de valores e de seus respectivos eleitores. Por mais chocante e estúpido que seja um conteúdo ou outro — e me refiro a ambos, já que Wyllys também diz muita besteira quando se considera o alcance da democracia —, é preciso considerar que ambos mantêm ativos os três mecanismos da representação. Para um democrata — que admite que os outros podem e até devem pensar de modo diferente —, o que interessa é a função, não o conteúdo, ressalvados, evidentemente, os óbices de natureza constitucional. Mas não estou aqui a decretar empates porque essa não é a minha praia. Retomo essas escaramuças desde o começo e indago:
- quem  tentou calar quem?
- quem tentou cassar um direito constitucional de quem?
- quem tentou cassar um direito regimental de quem?
Quem sabe ler direitinho já entendeu que a frase “não me representa” é essencialmente antidemocrática e falsa. Sabem por quê? Porque, na dimensão terceira, Feliciano representa também os gays, e Jean Wyllys representa também os evangélicos, porque gays e evangélicos, a um só tempo, são representados pelos Poderes da República.
E a militância gay? Ela representa?
No que concerne à representação como mera encarnação da vontade de indivíduos, é evidente que Feliciano não representa todos os evangélicos — aliás, ele nunca disse isso. Mas e a militância gay? Representa todos os homossexuais? Quando Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, saúda o casamento de Daniela Mercury com a sua “esposa”, cobrando que Maria Bethania, Gal Costa e Margareth Menezes se assumam lésbicas, indago: ELE REPRESENTA TODOS OS GAYS? Não há homossexuais que rejeitam essa patrulha? Digamos que isso seja verdade — eu, com efeito não sei e não me interessa o que elas fazem —, pergunto: o sr. Luiz Mott acredita que uma mulher eventualmente homossexual perdeu o direito à privacidade? Todos são obrigados a expor a sua vida privada com espalhafato, a exemplo dele próprio?
A propósito – qual dimensão da democracia ele encarna? A da representação dos indivíduos? Não! A da representação dos valores? Não! A da representação da instituição? Não! Quem enfia o dedo na cara do outro, tentando obrigá-lo a fazer o que não quer, não é um democrata; é só um autoritário que não é um ditador não porque não queira, mas só porque eventualmente não pode. A representação democrática é mais do que a soma aritmética de vontades ou o confronto de procuradores de corporações de ofício. Se cada uma dessas expressões não arredar pé de suas convicções e levar o conteudismo ao pé da letra, esquecendo a razão por que todos estão lá, então perdem a função, e a democracia vai pelo ralo. O regime democrático só existe porque é, sim, expressão da vontade da maioria, mas só será, de fato, democrático se preservar os direitos da minoria — coisa que o fascismo, que sempre foi de maioria, nunca fez; logo, maioria não é sinônimo de democracia. Mas cumpre notar: se um grupo evidentemente contramajoritário pretende, ao arrepio das três dimensões da representação, impor a sua vontade, aí, então, estamos diante de uma ditadura de minoria. Feliciano não ME representa nem ao conjunto dos evangélicos. Jean Wyllys não ME representa nem ao conjunto dos gays. O Parlamento, que abriga Feliciano e Wyllys, no entanto, ME representa. E só deixará de ME representar se eu decidir ser um anacoreta, distante de toda gente, ou partir para a luta armada contra o regime democrático. Por Reinaldo Azevedo

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