Conforme
o esperado e o previsto, a grita contra a alteração da maioridade penal de 18
para 16 anos já é bem maior e bem mais presente na imprensa do que as
manifestações de indignação com a morte de Victor Hugo Deppman. Ele levou um
tiro na cabeça na terça-feira à noite em frente ao prédio onde morava, no
bairro de Belém, na Zona Leste de São Paulo. Estava com as mãos para o alto,
não esboçou a menor resistência. Aceitou entregar o que o outro lhe pedia. Não
foi o bastante. Depois de lhe tomar o celular, o bandido o executou com um tiro
na cabeça. Deppman tinha 19 anos. Do assassino, não saberemos nem o nome. O
Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe a divulgação. Ele era um “dimenor”
por mais três dias apenas. Setenta e duas horas depois de matar Deppman,
completou 18 anos. Tivesse já feito aniversário, saberíamos quem é ele e
poderia ser processado por latrocínio — um crime hediondo. Como era um
“dimenor”, ficará internado no máximo — isso quer dizer que pode sair antes! —
três anos. Sob nenhuma hipótese, continuará detido depois dos 21. Saíra da
Fundação Casa com a ficha limpa. A consciência jurídica nacional, cuja moral
foi carcomida pela patrulha politicamente correta, acha que tem de ser assim.
Se o assassino de Deppman não tiver a consciência pesada — não parece que seja
o caso —, o evento vai lhe sumir da memória. O Estado brasileiro assegura que a
morte jamais apareça na sua ficha. A vida de Deppman custará um
recolhimento — não é prisão! — de meros
três anos, e depois o dito-cujo poderá circular livremente por aí. Ele já tinha
sido apreendido por roubo duas vezes. Mas, sabem como é, “dimenor” que era, foi
solto. Um dia um estudante de Rádio e TV, um trabalhador, um filho, um
namorado, um amigo de muitos amigos teve a má sorte de encontrá-lo pelo
caminho. E morreu. O estado brasileiro, e isso é estupidamente escandaloso!,
garante o apagamento da história. Por alguma estranha razão, o assassino de
Deppman é considerado a verdadeira vítima. É como se a vida daquele rapaz fosse
uma espécie de preço que a sociedade paga por sua perversidade. É como se o
jovem Deppman devesse arcar pessoalmente por, sei lá, o sistema de iniquidades
sociais no Brasil. É como, em suma, se as iniquidades, ainda que verdadeiras,
realmente fizessem assassinos. Se fôssemos fazer um pouco de história das
ideias, é claro que encontraremos nessa visão de mundo ecos de uma
interpretação muito peculiar de luta de classes, que garante o direito ao
assassinato. Não que os comunistas originais repudiassem homicídios, inclusive
em massa. Longe disso! Ninguém teorizou sobre a morte como eles — mas não para
esse tipo de banditismo. Aliás, todos os países comunistas, sem exceção,
adotaram a pena de morte — que vigora nos que ainda se dizem partidários desse
regime. Fôssemos recuar ainda um pouco mais, bateríamos em Rousseau, o suíço
moralmente tarado, capaz de entregar os próprios filhos para a assistência
pública porque, afinal, considerava que os homens nascem bons e são corrompidos
pela sociedade. Esses que se arrepiam só de ouvir falar em baixar a maioridade
penal estão convencidos de que o dito-cujo que matou Deppman o fez premido por
circunstâncias que não foram de sua escolha. Não perguntam por que outros,
submetidos às mesmas ou muito mais severas condições, escolheram trabalhar,
respeitar o próximo, lutar para enfrentar as próprias dificuldades. No fim das
contas, essa gente acredita que existe uma moral particular na pobreza que
contempla o assassinato. Juristas saíram combatendo a ideia. Gilberto Carvalho
saiu combatendo a ideia. Michel Temer saiu combatendo a ideia. Todos eles
falaram, com palavras variadas, que o Brasil precisa é dar mais atenção a seus
jovens, melhorar a escola etc. Sim, é verdade! Mas assassino precisa é de
cadeia. Aliás, meus caros, é uma estupidez a frequência com que os homens
públicos no Brasil e as ditas elites bem-pensantes articulam o binômio
“cadeia-escola”. Quem gosta de fazer essa confusão pode não oferecer cadeia a
quem precisa de escola (até porque fazê-lo é muito caro), mas fatalmente acabará
oferecendo escola a quem precisa de cadeia — e aí elas é que se transformam em
verdadeiros centros de violência, inclusive contra os professores. É claro que
reconheço que há pessoas de boa intenção a sustentar que a “diminuição da
maioridade penal para 16 anos não resolveria o problema”. Mas o que significa,
afinal, “resolver o problema”? De qual “problema” se está a falar? Já abordo
essa questão em particular. Antes, algumas palavras à turma da má-fé ou da má
consciência. É vigarice intelectual consciente, estudada, tratar a maioridade
penal aos 18 anos como se fosse uma medida de bom senso, mundialmente adotada,
e estivessem alguns reacionários no Brasil querendo introduzir na legislação
uma jabuticaba autoritária. Ao contrário! A maioridade penal aos 18 anos é que
é a exceção! A esmagadora maioria dos países adota, vamos dizer, uma idade de
corte abaixo dessa. Nações as mais civilizadas da Terra nem mesmo estabelecem
um limite. Cada caso é um caso segundo a sua gravidade. O que se evita é juntar
o jovem criminoso com os adultos, o que me parece uma medida sensata. Os que
estão convictos de que as leis que estão aí devem ser mantidas deveriam, em vez
de fazer discursos sobre a sociologia da pobreza — geralmente, sem conhecer o
assunto, com base no puro achismo e no suposto bom coração —, demonstrar a
eficiência da legislação; deveriam demonstrar que elas servem para proteger a
sociedade e concorrem para a sua tranquilidade. E aqui chego ao outro aspecto
da questão, que larguei solto dois parágrafos atrás. As penas devem concorrer,
sim, para a ressocialização do criminoso e coisa e tal. Mas essa é uma de suas
dimensões. Pena é, e deve ser, principalmente punição, aplicada segundo os
fundamentos que regem os direitos humanos — isso não está sob debate, embora as
cadeias, no Brasil, no mais das vezes, sejam verdadeiros pardieiros. A pena é o
que cobra a sociedade pelo agravo sofrido, ora essa! Ou é isso, ou é o estado
da natureza. Coloquem o meu nome em todas as petições para humanizar os
presídios. Quem pode ser contra isso? Mas não acho razoável que, nestepaiz, um
condenado por crime hediondo possa ficar preso em regime fechado seis, sete
anos apenas. Como não há instituições para regime semiaberto, sai dali para
casa. E pronto! Já a morte, bem, essa não tem regime de progressão, não é
mesmo? Machado disse em “Esaú e Jacó” que ela é um “estado de sítio
permanente”. Eu digo que é a ditadura perfeita. No caso do “ dimenor”, a vida
do outro vale três anos, com a garantia do apagamento da memória. Em 2016, o
dito-cujo que matou Deppman estará solto. Se ficar pela vizinhança antiga, os
próximos saberão quem é ele. Se mudar, nem isso. Poderá se empregar, sei lá,
como servente de escola, jardineiro de residências, motorista… Mais: pode se
inscrever num desses cursos oferecidos por empresas de segurança e se tornar um
guarda privado armado. Se seu nome desaparece dos registros, pode até mesmo
integrar uma força pública de segurança. O Estado lhe terá dado três anos para
refletir sobre os seus atos… E Deppman? Restará na memória de seus familiares
pra sempre, de seus amigos por muito tempo e só. Não terá descendentes. Um dia
ele teve a má sorte de cruzar com o dito-cujo, e um pedaço da história humana —
sim, é isto mesmo — acabou ali. A estúpida incultura religiosa desses tempos (e
não estou chamando de estúpidos os que não creem, deixo claro!) vive se
perguntando por que Deus permite isso e aquilo, mas pouco se pergunta por que
os homens permitem isso e aquilo. O dito-cujo, a três dias de completar 18
anos, decidiu que poderia interromper o fio do destino de Victor Hugo Deppman.
E se forma, na prática, um verdadeiro coro não exatamente em defesa do
assassino — que a tanto a estupidez ainda não chegou —, mas em defesa daquilo
que ele representaria. E o que, afinal de contas, ele “representaria”? A luta
entre os supostos “progressistas”, que defendem um Brasil mais justo e mais
humano, e os “reacionários”, que estariam querendo se aproveitar de um caso
como esse para fazer a sociedade regredir. Mas “regredir” exatamente a quê? Afirmar,
como valor, que a vida humana não pode valer tão pouco; sustentar que ninguém
pode sair por aí brincando de Deus e determinando quem vive e quem morre;
deixar claro que esse comportamento não é aceitável e será severamente punido…
Serão mesmo esses valores “reacionários”? Respondo o óbvio: não! Nem aqui nem
em qualquer outra democracia do mundo, que não condescende com seus assassinos,
como condescendemos com os nossos. A tragédia humanista — o nome é esse mesmo!
— dessa visão de mundo é que ela decide passar a mão na cabeça de homicidas
pensando estar respondendo, de maneira eficiente, a outras questões, como a
luta contra a desigualdade, as injustiças sociais, a miséria, a pobreza,
escolham aí… Mal se dão conta esses iluminados de que são justamente os pobres
os que mais sofrem com esse estado de coisas. Não é a Vila Nova Conceição,
Higienópolis, Ipanema ou Leblon que fornecem, todos os anos, a carne barata dos
50 mil homicídios. Esses mortos estão nos morros e nas periferias. Punir os
homicidas, podem acreditar, é uma forma de fazer justiça social, sim, senhores!
E é também uma resposta necessária ao bom funcionamento da sociedade e, SIM,
SENHORES!, AO LUTO DOS QUE PERDERAM AQUELES A QUEM AMAVAM. Penso com compaixão
e com sofrimento na família de Victor Hugo Deppman. Vi uma foto de seu pai,
José Valdir, no jornal, devastado pela dor. Uma parte de nós vai com quem
amamos. Pior quando a pessoa nos é arrancada. Este senhor não tem voz. Os
políticos, os juristas, as ONGs, a partir de agora, tomam conta do debate. Seu
filho vira peça de uma equação, de um debate de natureza intelectual. Daqui a
três anos, o dito-cujo, sob a proteção do Estado, poderá dividir a rua com o
pai de Victor Hugo, o ônibus, o vagão do metrô. A José Valdir, não será
permitido saber nem o nome nem a cara do assassino. É como decretar a morte de
Victor Hugo pela segunda vez. Chamam isso de justiça. Eu chamo de iniquidade.
Por Reinaldo Azevedo
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